Quando o corpo se deita
na tela, uma voz em pequenos murmúrios e gemidos abraça-se às pinceladas manhãs
de Primavera. A tinta, as tintas, o pincel, todos são o coração ensonado da
imagem sombreada das lâminas do desejo. A fotografia ergue-se como se erguem todas
as crianças quando ouvem a voz da mãe; o filho perfeito, esse espaço entre a
noite e o dia, não existe. As cores são a saudade, quando a mão do artista
acaricia esse corpo de luz e sombra, quando o artista os olha
E nada como um pequeno
beijo junto ao mar.
Todos os barcos, todas as
cores, dançam agora sobre a tela inanimada, quase a desfalecer; a morte ocorre
quando o artista dá por concluída a sua obra; mas será que a obra fica assim,
tão simplesmente, concluída? A obra é como um filho, só fica concluído quando
morrer e, transforma-se em pó.
As mãos, alicerçam-se aos
lábios da tela, o cavalete espreita pela janela e percebe que a tempestade se aproxima,
que os barcos estão a regressar rapidamente a terra, neste caso, à tela. O artista,
chora. O corpo, suspenso na tela, vacila e, percebe-se que existem
pequeníssimas gotículas de suor; a pele absorve as cores primárias, cerras os
olhos e liberta um uivo de silêncio.
Assim, a tela entre
pequenos gemidos e outros tantos sons inaudíveis, encosta-se às mãos do
artista, rodopia em sentido anti-horário e, desce até às profundezas do abraço.
Alguém me sabe dizer o que fazem as mãos do artista quando a obra termina? Nada.
São os olhos da arte.
Sentem-se as fugazes
candeias, quando dentro do atelier uma parcela de luar ilumina o corpo
terminado, pronto a ser vendido. O artista constrói corpos para venda e, quem
comprar os corpos construídos pelo artista, através das mãos, olha-os. O submundo
das profundezas mais esguias, carrega no peito o cansaço do dia, carrega nas
mãos, os olhos do amanhecer, quando ainda todos dormem, mesmo os corpos mais
preguiçosos deitados na tela.
A tela é um monstro que
se alimenta do corpo, pequenas cores misturadas numa tarde de Inverno e,
sabendo que todos os corpos são desprovidos de lábios, aqui podemos dizer que o
beijo é proibido. O sagrado desejo, quando a mão, um dos olhos da tela, desliza
até encontrar as coxas envenenadas numa tarde de silêncio, assim, percebe-se
que os dias, que as noites, que tudo, que nada, fazem sentido nesta tela imaginária
que é a vida.
Se a vida são cores em
movimento numa tela nua, branca, suspensa num cavalete, o exercito de pinceis e
espátulas são o criador Deus quando acordou ao terceiro dia. Os mandarins da
insónia poisam sobre a minha sombra desejada por uma sombra de medo, ao fundo,
lá longe, um pequeno cardume de peixes em papel colorido, aproximam-se e,
todos, devoram-me, restando depois, uma tela nua e vazia.
Como sempre, existe
dentro de nós uma tela nua, vazia, recheada de medo. E este pedaço de mundo
submerso, alimenta-se das palavras que o poeta vomita sobre os corpos deitados
na tela; ninguém percebe o desejo do artista, quando com um punhado de pinceis
e algumas espátulas, transforma o branco em corpos, com asas, que voam em direcção
ao mar, e o mar nunca será um filho de Deus.
As mais belas canções de
uma infância entre lápis de cor e bolas de plasticina, e depois do lanche, um
papagaio colorido mergulhava no cacimbo solidão de mais uma tarde junto às
mangueiras.
E este pedaço de mundo
submerso, ergue-se entre os rochedos e os corpos pincelados na tela.
Alijó, 05/02/2022
Francisco Luís Fontinha