(…)
Triste?
Que algo de triste ia acontecer, e
aconteceu, e.… senti-me ténue nas mãos garras da gaivota sem nome, pediram-me a
certidão de nascimento, acanhadamente respondi-lhes que não a tinha, que nunca
a tive, porque
Sou,
Sentia-lhe o cheiro da naftalina
nas roupas emagrecidas, e eu
Sou, sou um apátrida com dentes de
marfim, e eu, eu sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que
morreria como um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde
habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos
Sou,
Pássaros como bolas de naftalina,
como beijos prometidos e nunca dados, como beijos perdidos na avenida longínqua
da saudade, e sentia-te sentir na minha mão os teus velhos lábios, os teus
lábios inventados pelo batom encarnado, e de uma roulotte ouviam-se-lhe os
gritos da distância, no oitavo andar sentia-lhe os sons amorfos encurralados na
janela de porcelana, ele chorava entre as linhas do velho, também ele, do velho
Caderno quadriculado?
Um lindo poema morre, e sou,
sentia-lhe o cheiro da naftalina nas roupas emagrecidas, e eu conversava com as
também velhas sombras de Deus, e de nada percebia, queríamos conversar e não
tínhamos todas as palavras necessárias, Deus imaginava-me um louco vestido de
andaime suspenso num oitavo andar da memória, Deus queria-me e eu sentia-lhe os
sonoros melódicos suspiros do velho piano de cauda, um livro estava com febre,
uma mão agachada no capim, tristemente agoniada... mão, não tinha força para se
levantar, para gritar, para chamar os velhos pássaros que viviam nas velhas
árvores no velho quintal,
Caderno quadriculado?
Sou,
Sou, sou um apátrida com dentes de
marfim, e eu, eu sabia que morreria como um rio de encontro ao mar, que
morreria como um barco encalhado num velho quintal de um velho bairro onde
habitavam velhas casas, com velhas árvores, onde viviam velhos meninos, e que
vestiam velhos calções e calçavam velhas sandálias... e nas mãos
Nas mãos velhos papagaios em papel
pardo,
E nas mãos sentia-lhe o nome “pai”,
e ele percebia o meu choro, as minhas lágrimas, como percebeu muito mais tarde
o meu sonho...
Outros espiavam-nos juntos às
bananeiras com quatro cadeiras e um círculo de sombra, fervíamos um no outro, e
outros, e outras, aos poucos apenas o silêncio do teu corpo fervilhando entre
os meus dedos, outros, e outras, aos poucos o teu púbis vulcânico descia a
montanha do Adeus, e cada vez mais longe
Fervilhando,
Fervíamos,
Deixávamos os meninos em volta de
pequenas poças de água, tinha chovido, a terra cheirava a fogo, e o céu
começava a clarear como acontecia com as janelas da velha barcaça que nos
levava até ao paradisíaco Mussulo, eu, eu amava-o, e tu, tu apenas encolhias as
pernas, e sobre ti um lenço de desejo te absorvia, flutuavas como uma abelha
dentro da cubata, rodavas em pequenos círculos trigonométricos, e dos teus
lábios um líquido amargo com sorriso de co-seno desenhava-te na face esquerda
uma parábola, a equação descia-te até enrolar-se nos teus tornozelos de areia
branca, palmeiras e outros, e outras
Fervilhando,
Fervíamos,
E outras melodias esperavam no cais
pelo desejado embarque, deixei-te para nunca mais poisar-me sobre ti, voando,
eu, eu ainda tentei..., mas caí sobre o Oceano, mergulhei acreditando
encontrar-te lá muito no fundo, mas
Fervilhando,
Pedras e nada mais,
O pôr-do-sol era triste,
fervilhavas nos meus longos dedos, e os teus gemidos alimentavam todo o espaço
vazio da cubata, não tínhamos sequer onde poisar uma gotícula de sémen, não
tínhamos sequer onde deixar suspenso na madeira misturada com zinco o crucifixo
que tínhamos trazido do outro lado da cidade, antes de partirmos, antes de te
deixar sobre o cais..., e quando percebi
Fervilhando,
Pedras e nada mais,
Percebi que tinhas desaparecido
entre o cacimbo e a saudade, percebi que tinhas zarpado como a nossa velha
barcaça, procurei por ti, inventei desculpas, cheguei a descer às profundezas
do Tejo, entrei em Cais do Sodré, bebi, embriaguei-me, dancei sobre mesas e
cadeiras, cambaleei até Belém, atravessei os carris e sentei-me junto ao
rio..., fervíamos como líquidos amargos na imensidão dos botões de rosa, alguns
bravios, outros, outros mórbidos, outras..., outros sem vida, e nada, e
ninguém, nem sequer um simples peixe... para me informar do teu paradeiro,
percebi que a nossa cubata tinha ardido, anos mais tarde, percebi que o teu
corpo tinha crescido, mudado de forma, percebi que estávamos velhos, como o
espelho da casa de banho, quando hoje me olha e diz-me
Fervilhando,
Fervíamos,
E eu, eu... no cais pelo desejado embarque...
Como ser feliz quando não se é
feliz, como, como acreditar... como confiar... como?
Sendo,
E apenas, voando como as nuvens de
chocolate na boca das crianças, como, sendo, as proibidas manhãs com Sábados
invisíveis, acreditando?
Sendo, parecendo ser e não o ser,
esperar, esperar, só, sentado, num banco em pedra, frio e húmido, de esqueleto
quebrado, os ossos acabados de submergir das profundezas vozes sem as ditas
Palavras?
As loucas palavras?
Sendo, eu sei, voando, se eu
soubesse, voava dentro de ti, teu corpo de magnólia com perfume a desejo, e
ficando, e deixando
As loucas palavras?
Como retirara venda dos olhos, se
ela, se ela é de aço maciço, como cordas de sisal suspensas do céu, servindo,
como acreditando, apenas para acolher com doçura as velhas e cansadas árvores,
as alegres e as tristes, como nós, e apenas, voando, e sendo, como tu, sofrendo
como tu, apenas, assim.… como as algibeiras da noite rompendo a madrugada e
pintando o sobejante com acrílicos em cadáveres, quase a serem enterrados vivos
na fogueira, sendo, acreditando e
Palavras?
As loucas palavras?
Sofrendo, e ardendo em ti quando
transportas contigo a fogueira inventada numa noite de Inverno, quando
sentados, nós, desenhávamos o fogo nas paredes do escritório, como acreditar?
Acreditando,
E
E como confiar?
Confiando,
Não o sei, apagando esse fogo,
ouvindo a música das plantas, simplesmente... ouvindo e sonhando e
Acreditando?
Deixara de chover, a máquina de
lavar roupa pifou uma vez mais, constipação, ou
Fígado,
Ou
Talvez não,
Não temos tempo para despedidas,
Pedro, O senhor Alberto para o filho que parecia uma abelha em círculos de luz
às voltas do avô João, o carro pronto a avançar estrada fora, recheado de
pequenas miudezas, batatas e couves, chouriços e presunto, pão de milho, e o
Opel Kadett de 1964 aos soluços como os bebés depois de nascerem enquanto aguardam
a chegada do babado pai e a enfermeira
É um menino,
Fígado,
Ou
Talvez não,
O pai retractava o filho com
imagens a preto e branco, no tornozelo uma fitinha azul com o nome e o dos
progenitores, e se fosse hoje, e se fosse hoje juro
Pifou
E deixara de chover.
In “Noites de mim”
Francisco Luís Fontinha