Ele desaparecia do meu imaginário, acendiam-se os
holofotes da glória e da fortuna, ao longe o comboio deslizava suavemente sobre
o pavimento improvisado quando da montagem dos milhentos ferros e ferros e
companhia falida, aproximava-se do banco de jardim onde me sentava, sentia
Ouvia-se perfeitamente o cheiro do rio dentro das
clarabóias das paixões proibidas pela loucura, das flores felizes, e infelizes,
a tristeza
Aos trambolhões da nuvem número três, tempos depois,
privatizada, deixou de chover, morreram todos os comboios e todos os circos e
todos os jardins, ele, e
E docemente colocava a sua cabeça no meu ombro
esquerdo, eu, eu sorria, e desacreditava-me que seria possível encher todo
aquele espaço, e minutos depois,
Morreu,
Não sabia, sempre pensei que tinha sido privatizada,
E paz à sua alma,
Amém,
Os rios?
Não me digas que os rios são de pedra, porque, não o
são, não, não me digas que a fome é invisível, porque, não o é, não, não me
digas que o teu corpo é inacessível, como uma janela altíssima, quase junto à
lua, porque eu não acredito que ele esteja tão longe de mim, não
(é atarde ainda para pegar na tua mão)
Não, não acredito, e por favor, não me digas que a
chuva são as lágrimas de Deus, porque, não o são, não, não
(imerso nas profundezas da tristeza que a tarde
aproxima com a ajuda do vento, imerso nos cabelos das nuvens sabendo que não
existem nuvens, e pergunto-me, o que tenho eu nos meus lábios? Qualquer coisa
estranha e parecida com os cabelos de um ser humano, com esqueleto e na boca
sinto-lhe pequenos orifícios, cavernas melhor dizendo, e escrevendo, e dizem-me
que não podem ser lábios porque não existem lábios nas nuvens, E, E se não
foram nuvens que o vento trouxe? Que trouxe então o vento? E se em vez de
tristeza, não, não são profundas nem tristes..., E se forem? E se a água da
chuva forem as lágrimas de Deus?)
Não, Não o são, porque se o fossem, eu saberia, não,
não me digas que hoje é terça-feira, porque não o é, porque se o fosse, eu, eu
estaria completamente quilhado, pois era hoje que partiria para a eterna viagem
de barco para o longínquo
(de pedra, os rios?)
Oh minha querida, como poderiam ser de pedra os
rios..., como caminhavam os barcos no interior das pedras? Não, não o são,
não...
(e o mar, meu querido?)
Não, não acredito, e por favor, não me digas que a
chuva são as lágrimas de Deus, porque, não o são, não, não, e, no entanto, é
tarde e eu sem entrar em casa, e, no entanto, caminho sobre um rio que se tu
não estivesses ao meu lado, juro, com medo que me oiças, dir-te-ia que o rio
onde caminho é de pedra sim, sim o é, mas não o digo, para não o ouvires,
porque vais logo dizer
(VÊS COMO EU TINHA RAZÃO!)
E, não, não a tinhas,
(de pedra, os rios?)
Não a tinhas e nunca a tiveste, aparecias-me como se
eu fosse o teu canino de estimação, colocavas-me uma gravata de plásticos, um
pouco comprida diga-se, e pegavas em mim e levavas-me para o jardim em frente à
nossa casa, um sexto andar em ruínas, sem elevador, com alguns dos degraus
completamente embriagados pelo silêncio e pela escuridão, não tínhamos luz, e
quando forçado a erguer-me do chão e subir até ao tecto do céu, três degraus
depois, estava a cerca de seis degraus do local de partida, assim
(não, não)
Tão pequeninos, assim tão próximos dos alicerces
fortificados pelas mãos calejadas quando pendurávamos o cigarro na beirinha da
grade da varanda, e
(já agora vais dizer-me que os barcos são de papel,
não?)
Não, não, e, quando percebíamos... o cigarro com a
ajuda do vento e da lei da gravidade, pumba... mesmo no centro do capô do
automóvel estacionado na rua, coitado dele, e um deslumbre cinzento começava a
erguer-se, e a erguer-se, até que acabou por desaparecer, eu tremia, o medo que
ele se incendiasse, eu quase que me lancei da varanda para mais depressa
conseguir resolver aquilo que o vento tinha provocado, e não me lancei e o
automóvel não ardeu, E será que o vento apenas trouxe nuvens com cabelos e
cavernas? Mas, tu não acreditas em nuvens com cabelos e cavernas!
Tão pequeninos, assim tão próximos dos alicerces
fortificados pelas mãos calejadas quando pendurávamos o cigarro na beirinha da
grade da varanda, e
(já agora vais dizer-me que os barcos são de papel,
não?)
E neste momento acredito que os cigarros inventem
dores de cabeça na copa das árvores, porque se assim não o fosse, os pássaros
fumavam, os frutos fumavam, as folhas fumavam, a chuva que dizes ser as
lágrimas de Deus, fumavam, e como sabes, não fumam...
Árvores, pássaros, frutos, folhas, ou mesmo, como tu
gostas de o dizer, as lágrimas de Deus, aquelas que ultimamente não nos largam,
dia e noite, já não bastava não termos luz, água canalizada ou gás, ainda temos
o problema do telhados, como qualquer coisa relacionado com bicos de papagaio,
e claro, entra-nos as lágrimas sobre os cobertores embrulhados em insónias e
soluços de Carnaval, aparentemente, desisto de construir um lugar seguro,
eterno, com os rios de pedra, porque a tua teimosia, porque a falta de cigarros
(VÊS COMO EU TINHA RAZÃO!),
Eu
Também, respondia-lhe, morreu, vendem-se laranjas,
vendem-se livros, quadros, ele
E docemente colocava a sua cabeça no meu ombro
esquerdo, eu, eu sorria, e desacreditava-me que seria possível encher todo
aquele espaço, e minutos depois
Fingia que eu era um estranho, louco, pouco, talvez
dizimado pelas sombras das noites cobertas por um oleado de vidro, estrelas em
pétalas azuis suspensas nas orelhas das madames à porta do cabaré, e sempre que
lhe perguntava
Quem é?
Respondiam-me,
Não sabemos, não sabemos
Ínfimas películas de tristeza que o vento trazia,
adormeciam, depois, sobre as águas dilatadas que a nuvem número três deixou
escorregar sobre
Não sabemos,
Morreu,
Não sabia, sempre pensei que tinha sido privatizada,
E paz à sua alma,
Amém,
Eu
Também, sempre que posso, sempre que me deixam, ele
Morreu,
Não sabia, sempre pensei que tinha sido privatizada,
E paz à sua alma,
Amém,
Eu,
Não somos o vento, porque se o fossemos... tínhamos nas
mãos asas... e temos dedos, dedos de acariciar corpos sofrendo, corpos
desejando, corpos... acreditando,
Deve vir de longe, pensei,
E eu, eu ali, suspenso entre o olhar obtuso e a
penumbra neblina do fumo do meu pobre cigarro, comecei a manuseá-lo como se fosse
o rosto de alguém desconhecido, alguém que pela primeira vez tocava nas minhas
mãos, senti um leve arrepio e sou embrulhado em palavras, confesso, palavras
que nunca na minha vida de carteiro tinha encontrado, tocado..., ou, tocar
toquei..., mas apenas nos selos, e por alguns minutos,
Me perdi,
desencontrei, me amei…
(ficção)
In “Noites de Mim”
Francisco Luís Fontinha – Alijó