quarta-feira, 22 de maio de 2013

A cidade perpétua

foto: A&M ART and Photos

Mergulho na cidade perpétua, ambígua e solitária, mergulho-me como se eu pertencesse à classe dos aços carbono, um ser estranho, diletante, companheiro e amante de melodias poéticas, das flores carnívoras e das árvores em desenhos herbívoros, poisava-me no varandim com quatro cadeira de vime, uma mesa também ela de vime, e na companhia de três invisíveis cadáveres de areia, sobressaia um sorriso defunto com lágrimas de incenso, ouvíamos tocar o telefone, propositadamente, não atendíamos, tínhamos medo da cidade perpétua, tínhamos medo às sombras das sombras que subtraiam à cidade as saborosas multiplicações e divisões,
o miúdo dos calções, multiplicava beijos e dividia abraços, conclusão
Empobreci, quase tudo perdi, porque ninguém, a não ser numa outra cidade, ninguém enriquece multiplicando beijos e dividindo abraços, ninguém engorda lendo poesia, e ninguém, ninguém...,
conclusão, pertenço à classe dos aços carbono, tenho cento e setenta e cinco centímetros e vivo numa casa com silêncios em pedaços de rés-do-chão, na rua dos milagres, sem número, cidade perpétua, as pessoas apelidam-me de barra de ferro, e quando entro no café, quando tudo parece adormecido, ouvem-se os murmúrios das cadeiras vazias
Ninguém na sala, um exemplar espaço exíguo, liminarmente penumbro, vazio, ninguém se levanta à minha passagem, ninguém se recorda da minha existência, ouvíamos os candeeiros a petróleo quebrarem os vidros de gelo das janelas com inclinação a norte, um edifício de quase trinta e cinco andares, tão alto, meu deus, alto, tira-nos a visibilidade, acorda a neblina, e nem com os faróis de nevoeiro conseguimos ver o mar,
vazias?
Porquê?
vazias, e tristes, e longas manhãs de doce claridade, e
Traziam-nos os pães de leite em réstias de desassossego, e como hoje, e como agora
(um terramoto sonolento entranha-se-me)
e como agora, ontem, o nevoeiro entrava-nos porta adentro, brincava no corredor e depois de algumas horas, sentíamos-lo deitado no nosso sofá, vestido de criança, uma criança amena, simpática como todas as crianças, como todos os apitos dos petroleiros quando se fazem à costa, ao longe, ouvíamos-lhes os cigarros de enrolar perdidamente perdidos nos corações dos marinheiros com âncoras de plátano bordados com fio doirado,
e
Traziam-nos...
(um terramoto sonolento entranha-se-me)
… pequenas borboletas de papel, e ouvíamos-lhes os sonoros ruídos das montanhas ensanguentadas pelos perfumes marinhos, coisas tristes com roupa de uma cidade perdida e ausente, farta em alturas, até que quase, não nós, mas eles, quase que chegavam com as pontas dos dedos da mão ao céu,
Ao céu?
pode lá ser isso possível,
Nem que a cidade mude de nome, e de perpétua passe a chamar-se “a cidade da neblina encarnada” onde vivem barcos de porcelana, onde vivem meninas de olhar castanho com cabelos negros, meninas, e meninos, o circo, esta cidade, a cidade dos circos, palhaços, malabaristas, a minha apaixonada trapezista, e claro
pode lá ser possível, amanhã chover, amanhã acordarem as sobrancelhas e depois de levantadas, e depois do duche, voltarem para a cama, embrulharem-se nas pálpebras quebradas e numa voz húmida
Até amanhã, meu querido,
e numa voz húmida, cansada, (um terramoto sonolento entranha-se-me), e claro, o imprescindível AGENTE, o nosso querido Alberto, aquele que nos sustenta, aqueles que ainda acredita nas nossas capacidades, aquele... parvalhão, e de um até amanhã, meu querido, depois, descem os grandes rios às íngremes ruas da cidade, e claro
A tua inconfundível voz
até amanhã, meu querido,
Sem perceberes que amanhã já não vivo nesta cidade,
“mergulho na cidade perpétua, ambígua e solitária, mergulho-me como se eu pertencesse à classe dos aços carbono, um ser estranho, diletante, companheiro e amante de melodias poéticas, das flores carnívoras e das árvores em desenhos herbívoros, poisava-me no varandim com quatro cadeira de vime, uma mesa também ela de vime, e na companhia de três invisíveis cadáveres de areia, sobressaia um sorriso defunto com lágrimas de incenso, ouvíamos tocar o telefone, propositadamente, não atendíamos, tínhamos medo da cidade perpétua, tínhamos medo às sombras das sombras que subtraiam à cidade as saborosas multiplicações e divisões”,
sem perceberes que amanhã já não sou eu.
(ficção não revisto, o sono em decomposição, o cansaço sobrepõe-se ao livro que ultimamente tem vivido sobre a mesa-de-cabeceira, e em vez de folhear as páginas com sabor a “Abraço” de José Luís Peixoto, certamente folhearei os tristes lençóis com pronuncia de insónia... - Pronuncia? Sim, claro, propositada, e não Prenúncia...)

@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 21 de maio de 2013

Menina mimada

foto: A&M ART and Photos

Que cansaços
os teus abraços
que lábios vou ter
para construir um beijo com sabor a Primavera
que triângulo colocarei em minha mão para entrar no teu peito,

Que coração
teu ou emprestado
meu sem jeito
deitado sobre a sombra da paixão
que maçada as coisas tristes que me recordam o teu olhar,

Que movimentos são esses de pássaros em bater de asas
montes e vilas e casas
e tu e tu deitada nas sandálias que caminham sobre a praia...
que tempo e que desejos os teus véus de amendoim
quando rompe a madrugada dentro do meu jardim,

Que flores são as tuas mãos
quando poisam no meu pescoço apreensivo
desmedido
perdido...
que cansaços os teus abraços,

Que loucura ser teu sem o ser
escrever as palavras com medo de adormecer
de caneta na mão sobre a secretária em madeira...
que
que dizer de ti menina mimada.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Blogue Cachimbo de Água – Em destaque – Sapo Angola

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava

foto: A&M ART and Photos

Deixamos de ouvir os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou
de coração frágil
Ou porque ontem tínhamos onde nos sentar e hoje, hoje não cadeiras, hoje não bancos, hoje... que raio se passou hoje, que coisa, que nem um banco livre para poisarmos as pernas, descansarmos o rabiosque, nada, parece que nos abandonaram, como a elas, que as deixamos de ouvir, ou morreram, ou
e pior do que frágil, às vezes bate desmesuradamente, velozmente como um cavalo acabado de nascer, um inútil, ou
Ou uma triste mão como lágrimas de tempestade, que sem segundas intenções, pegava em nós, e acariciava-nos os nossos cabelos de enxofre, e sentíamos essas mesmas mãos, lisas, duchista, a percorrerem os nossos corpos acorrentados à baliza que ficava ao fundo do recreio, queriam que eu jogasse futebol, eu jogava mas inventava mentalmente personagens dentro de mim, e sabia que no futuro tu, olhavas-me no passado, como hoje, eu
olho-te no futuro,
Morreste já, como as estrelas que quando as vimos nascer, provavelmente, digo, quase de certeza, já morreram também como tu, perguntas-me
porquê?
Imagina a tua imagem longínqua de mim, sobre uma montanha de areia, imagina que essa imagem é reflectida e vem até mim, demorando milhões de anos luz, poderás concluir que quando a tua imagem me abraçar, tu, já não existirás, Certo?
olho-te no futuro, tens quatro filhos, já és avó, mal podes com as pernas, demoras uma infinidade a subir as escadas para o sótão da vaidade, quando atinges o patamar, abres a porta quase encharcada de bicho da madeira, ela range, e começa aos poucos a decompor-se como um corpo hirto mas morto, defunto, e de uma janela onde costumávamos ouvir as garças, é hoje uma parede de betão, sem acesso ao telhado, não temos divã, e os livros que tínhamos deixado ficar nas estantes, também eles, morreram, em pedaços, são agora poeiras voláteis em voos nocturnos,
Certo! E claro que não percebeste nada do que eu te disse, como sempre, imaginas-me louco, criança ainda, porque devido ao desfasamento entre o tempo e o espaço, eu vivo na infância, e tu, infelizmente, já ultrapassaste a velhice,
és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e todas as noites, sempre que a neblina desce até à cidade, contas as gaivotas que entram e saem do cais de embarque, um dia, vou crescer, vou ser adulto, talvez, talvez um marinheiro salteando de cais em cais, os alicerces das tabernas com mesas e toalhas em plástico, serviam-nos pedaços de churrasco e bata frita, depois, sofríamos a azia, o cansaço, o delírio das distâncias, desde a montanha longínqua até mim,
Certo, sofro porque ainda sou pequeno, brinco num quintal imaginário com um triciclo imaginário, no quintal percebo que existem muitas árvores, são reais, porque lhes toco, e elas, falam comigo, segredam-me o futuro e choram o passado, há um portão em ferro onde Às vezes, quando me sinto cansado, prendo o cordel que me dá acesso a um papagaio de papel esquecido no céu quase nocturno, são cinco da tarde, o dia escoa-se-me por entre os meus finíssimos dedos, que não sei se algum dia crescerão, se algum dia, eu crescerei, se algum dia tu acordarás do teu sono eterno, tão pouco
és defunta, vives num cemitério perto da Ajuda, e ouvíamos os murmúrios das garças, chegada a noite, sempre uma janela que se encerrava, uma porta com os gonzos empenados, talvez sofrendo de bicos de papagaio, espondilose lombar ou artrose, ou dobradiças enferrujadas, ou
de coração frágil
E a tua imagem, anos luz depois, chegava até mim, e docemente, abraçava-me.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 19 de maio de 2013

Inventavas o desejo entre as paredes pintadas de um azul claro

foto: A&M ART and Photos

Murmuro-te contra a fina película que separa o dia da noite, descem os cortinados das clareiras paixões de areia, e um sorriso de mar acorda nos teus braços, começa brevemente a noite agreste dos solitários portões de ferro, o jardim dos sentidos, em pedaços, acorrenta-se ao luar que finge viver nos teus olhos, percebo, hoje, que nunca exististe, nunca tiveste olhos, nunca tiveste boca, lábios, abraços para mim, percebo, hoje que nem o teu nome deixaste ficar no espelho do guarda-fatos cá de casa, penumbra, compartimentos embaciados quando entra em mim a neblina, os cruzeiros e os passageiro imaginados pelas tuas mãos, quando inocentemente
pegavas na esferográfica,
Nunca escreveste o meu nome, nunca desenhaste o meu corpo, nunca sequer escreveste no meu corpo... e que eu adorava-o, ser escrita pelos teus dedos de cacimbo ao final da tarde, sentir a Primavera a entranhar-se-me nas coxas como a concha de um molusco anónimo, sem nome, idade ou profissão, adorava-o, sentir-te em mim, sem estares sempre do outro lado da fina película de vidro, que separa o dia, da noite, e deixa ficar um espaço simples e vazio, oco, obsceno, leviano como os sonhos das árvores do quintal invisível onde em criança brincaste, gostavas de Favarrel – Carvalhais – S. Pedro do Sul, abrias a janela do quarto do meio, chamavam-lhe do meio porque talvez devido a serem três quartos seguidos, e esse, ficava mesmo no meios dos outros, era também o mais estreito, e com a paisagem mas bela, deslumbrante...
pegavas na
Em mim, ouvia-se o sino, ouviam-se os pássaros poisados na ramada das traseiras, ouviam-se os sussurros das espigas de milho, a dormitarem palavras por entre as frestas da ripas em madeira que revestiam o canastro, pegavas na esferográfica, e nem um risco o fazias dentro do meu silêncio peito, poisavas os cotovelos no parapeito, e ficas-te a imaginar sombras a subirem a montanha que olhava para ti, como se fossem lírios tímidos, tão tímidos que cerravam os olhos quando eu, quando eles me olhavam, eu nua, tu, entre dois vidros, e eles, elas pareciam pombas brancas à procura do som poético das palavras ainda não escritas, ainda não prenunciadas, e todo o meu corpo tremia com a tua ausência,
pegavas na esferográfica, inventavas o desejo entre as paredes pintadas de um azul claro, nelas, imaginava o mar, as gaivotas, os abraços que me pedias, e porque eu estava prisioneiro do feitiço da preguiça, não tos dava, desprezava-te como mulher, via-te como uma criança mimada, uma criança que para mim nunca cresceu
Cresci, meu amor, sou adulta, cresci como os eucaliptos da tapada do avô Domingos, cresci e sinto-me e sei, sou mulher, desejas-me?
que ainda olho para lá do espelho, e vejo-a de voz simples, e princesa, saltitar entre as coisas espalhadas no passeio da casa de Carvalhais, hoje penso que ainda és a mesma criança, a menina, a mimada, aquela que dizia
Amo-te, amo-te tanto, meu querido,
criança, menina, mimada até à ponta dos castanhos cabelos, e mesmo assim, hoje, vejo-a sentada num banco com ripas de madeira, aqui, nas Termas de S. Pedro do Sul... ou num qualquer jardim em Luanda,
Criança.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

A montanha da paixão

foto: A&M ART and Photos

Todas as palavras que escrevo
são túneis de vento
correndo sobre o mar
e de Setembro
até Novembro
imagino-as caminhando sobre o salgado amar,

Todas as estrelas palavras que o céu absorve
comem-se-lhes sílabas e tristes vogais
sonhos
loiça estampada com os teus lábios
e línguas matinais escondidas nos umbrais
portas de entrada... ou apenas... nada,

Todas... escrevo
sobre o teu peito camuflado nos carris da tempestade
a saudade
das coisas que transformam em corpos de olhar
olhar amar e... escrever
são túneis de vento... descendo a montanha da paixão.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Em destaque – Sapo Angola – Blogue Cachimbo de Água