Sentia-me confusa,
tremiam-me as pernas, dos braços, meus, claro, um pedaço de raiva
remexia-se convulsivamente, e olhavam-me pelo interior dos cortinados
de noite, que forçosamente cerravam as janelas do castelo da senhora
dos grandes milagres, onde, desde que me recordo, vivi, cresci às
mãos de uma religiosa meio louca, surda, que tinha alguns tiques, um
deles, enquanto falava comigo, metia as mãos nos bolsos do meu
hábito encarnado com listras azuis, e quando me apercebia, já
alguns do objectos que eu transportava jaziam nas mãos dela,
Desculpa-me minha filha,
mas faço-o sem perceber,
Usava um lenço de papel
pardo ao pescoço, fumava às escondidas, e tenho uma leve sensação
que gostava de mim, não o gostar como quem gosta de uma filha,
gostava no outro sentido, quando pela noite, descia a Almirante Reis
e numa das pensões de hora e meia, entrava, despia-se, e no silêncio
da noite convulsivamente, construía barcos de madeira prensada que
posteriormente um velho marinheiro utilizava quando ia em sonhos até
alto mar e cismava que tinha pescado uma menina loira com olhos
verdes,
Tinha um amante o teu
pai,
Fui literalmente pescada
por um marinheiro em alto mar, numa noite de tempestade e no
intervalo de puxarem as redes e de ele atafulhar o cachimbo de prata
com ópio, e enquanto acendia, e enquanto não acendia, e apagava-se,
e novamente acendia, o adjunto do mestre foi içando as redes, até
que
Comandante, comandante,
temos um grave problema, e enquanto ouvia o adjunto pensei logo que
tivesse sido o Francisco que caísse à água, pois quase sempre
andava embriagado, gritei, O que foi adjunto?
Um amante?
Temos na rede uma menina
loira com olhos verdes, pensei, Está ele também bêbado, maldito
vinho..., e olhei
E não queria acreditar,
pensei que fosse do ópio, mas percebi que não, era mesmo uma linda
menina, raios, e agora? Que vão dizer os meus amigos? Que fosse do
ópio, não, era mesmo uma linda
Tinha um amante o meu
pai?
Que era pintor e usava
sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras
transversais, e lia Proust, e nunca
Lhe perguntei o
significado do amor, sentia-me confusa, tremiam-me as pernas, dos
braços, meus, claro, um pedaço de raiva remexia-se convulsivamente,
e olhavam-me pelo interior dos cortinados de noite, que forçosamente
cerravam as janelas do castelo da senhora dos grandes milagres, a
irmã Margarida, pede um desejo
E eu sem hesitar, abraçar
o meu pai, tocar-lhe no cabelo indefeso que a própria idade lhe
desenhou na cabeça, pegar-lhe na mão, sentir o cheiro
Do cachimbo do teu pai
adoptivo?
Que era pintor e usava
sandálias de couro e vestia calções com mesquinhas letras
transversais, e lia Proust, e nunca
Tinha um amante o meu
pai?
E nunca me desejou
Até que o mar me levou.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha