domingo, 6 de abril de 2014

Estórias sem palavras...


Inventava estórias para eu adormecer,
dizia-me que todas as estrelas tinham mãos, que todas as estrelas tinham... coração, amor, e... e paixão,
acordava cedo,
sussurrava-me palavras inaudíveis, palavras frágeis, palavras sem rosto,
nuas palavras em corpos vestidos de papel,
inventava estórias com sabor a chocolate,
e ouvia o som melódico da voz invisível,
tinha medo do mar,
e hoje, hoje... amo-o, amo-o como se ele pertencesse à minha vida,
corresse nas minhas tristes veias, nas minhas... tristes palavras,
e eu menino, acreditava nas suas estórias...
nas palavras de estórias que vagueavam sobre os telhados da cidade imaginária.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 6 de Março de 2014

O sonâmbulo amachucado


Desenhava a tua voz no meu cansaço, sentia as tuas palavras amorfas nos meus braços, e tínhamos a consciência do término do dia, as horas para nós apenas significavam sombras, dispersos espinhos de uma rosa em decomposição, e havia dentro de nós o abismo disfarçado de melancolia, acordávamos tristes, dormíamos embrulhados em pequenas lâminas de prazer, sabia que o teu corpo flutuava numa janela envidraçada, virada para o Tejo, desenhava nas paredes do teu cabelo o afago da despedida, partias, voltavas, partias..., como os barcos a vapor procurando marinheiros, como lareiras acesas quando o doce Inverno invadia a cidade recheada de estrelas com sabor a embriaguez, lá fora
Preciso de ti, meu amor, ouvia-te enquanto te olhavas no espelho da saudade,
Pertencíamos às fogueiras imaginárias do quarto penumbra que nos servia de esconderijo, habitávamos no exíguo refúgio da literatura barata, pobre, esfomeada, e tu
Preciso de ti, meu amor,
Havia arbustos escondidos nas tuas mãos, pedaços de chuva miudinha nas tuas nobre pálpebras e
Preciso...
E quando percebíamos que a noite tinha sido engolida pela boca do caranguejo de mil patas..., tu, tu
Preciso de ti, meu amor, eu, eu ouvia-te do outro lado a caverna iluminada por morcegos, alguns vultos que nunca cheguei a conhecer, e claro, pelos teus beijos disfarçados de desejo, sentia-me perfeitamente feliz, quando não o era, sentia-me perfeitamente humano, quando não o era, e desenhava na tua voz as palavras que nunca escrevi, dizia-te que te amava... e não te amava, dizia-te que te desejava...
Preciso,
E...,
Preciso meu amor,
E nunca te desejei, e nunca foste a âncora que aprisionava o meu corpo ao cais das Colunas, eu regressava, sentia o peso dos caixotes em madeira, lá dentro quase nada, lá dentro... apenas, apenas objectos e memórias, e dor, e sofrimento com tentáculos,
E,
Preciso de ti, meu amor,
Um cigarro, um cigarro cor de amendoim sobre a mesa do café, ouvia um CD com os poemas de “AL Berto na Casa Fernando Pessoa”..., e
Preci...
E esperava que o mar entrasse em mim, que nunca entrou, que nunca me levou, apenas...
Te trouxe?
Regressei como um sonâmbulo amachucado, um menino que trazia na algibeira sonhos, calções e que acreditava no silêncio da gaivota pergaminho que dormia todos os dias na mesa da sala de jantar, perguntava
Precisam de mim?
E o amor respondia que sim, que precisava, que
Te trouxe?
Era meia-noite e o horizonte encerrou-se como os cortinados no Teatro, fim da peça, as personagens evaporavam-se à medida que tu
Precisas de mim, meu amor?
E eu, e eu...
Não, não quero regressar, não, não preciso de ti, meu amor, porque desenhei a tua voz no meu cansaço...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Domingo, 6 de Março de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

fantasmas do teu jardim


lia no teu o olhar o cansado abismo
aquele homem vestido de naftalina com odor a solidão
eras um livro sem palavras, um livro só, descalço... um livro que todos apelidavam de saudade
lia no teu olhar o silêncio da sanzala de prata
meninos que inventavam amanheceres
e meninas que dormiam fingindo o cacimbo da dor

lia e não queria acreditar
que havia sofrimento nos teus desejados ombros
lia e não queria acreditar
que existia no teu rosto lágrimas de chorar

rochas embalsamadas, pilares de areia, zinco, zinco que embrulhava a tua mágoa
e eu, eu acreditava que eras em porcelana
pintada de rosa adormecida
e eu, eu acreditava que no teu jardim viviam fantasmas..., fantasmas... meu amor
podia lá ser
podia lá ser..., no teu jardim... fantasmas...

lia no teu olhar o triângulo equilátero da tua paixão
pegava nos teus ângulos, calculava o seno e o cosseno do teu mesmo olhar
aquele que eu lia
lia... e deixei de ler
fiquei cego, ou... simplesmente voaste em direcção à ponte sem treliças
e deixei de olhar

e deixei de viver
lia no teu olhar o poema envenenado pelo ciume
lia e não mais quero ler
ler... o que diz o teu olhar... meu amor


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 5 de Março de 2014