A calçada de ossos
levava-a até ao rio dos silêncios, virgulas suspensas nos
parágrafos incompletos que a vida vai escrevendo nas folhas verdes
das árvores, os pássaros dentro da gaiola inventavam círculos de
luz até cair a noite nos olivais distantes da cidade, a calçada de
ossos
perdidamente apaixonado
pelos sonhos coloridos que o vizinho do segundo esquerdo,
segunda-feira, que tu desenhavas nos vidros embaciados das janelas
anguiformes do húmido edifício, o suor dilúvio que a tarde
provocava no peito da paixão deitava-se na cama cansada que o teu
corpo habitava, eu tinha medo de desejar-te até morrerem todas as
palavras,
a calçada de ossos, até
ao rio dos silêncios, há na morgue literária cadáveres de
prostitutas que os poemas comeram antes de serem poemas, quando os
poemas não eram poemas, quando os poemas de inverno chamavam-se
desejo das palavras, e ele, o poeta, o homem do segundo esquerdo
construía, uma por uma, as frases insignificantes de homens que amam
as árvores, de homens que amam loucamente os pássaros e os rios e
os barcos, de homens, apaixonados pelo vento, verdes árvores e havia
sempre uma janela indesejada, aberta, partida, abandonada, e homens
que amavam outros homens na clandestinidade dos cacilheiros
verdejantes, e afagavam o louco perfume dos sótãos com grandes
finíssimas que as aranhas do medo deixavam enrolas nos lençóis do
ciúme, e homens como eu que amavam mulheres impossíveis, e eu tinha
medo de desejar-te até morrerem todas as palavras,
à espera da tua mão,
tocavas-me e eu sentia os princípios elementares da mecânica
clássica, pedacinhos de saliva nas equações complexas que nas tuas
pálpebras acordavam depois da tarde se esconder no dormitório vazio
do edifício semeado segunda-feira na cidade sem que tu, meu poeta,
tenhas dado por ele, e ele vivo, lá, lá do outro lado da rua,
rouba-nos o sol e o rio, tocavas-me e eu recusava-me a comer a sopa,
perdia nos jardins as mãos e dizia-te O menino hoje não mãos, e tu
acreditavas, e me olhavas até que o mar começava a correr nos teus
olhos e eu sabia que choravas antes dos pássaros às voltas com os
círculos de luz, habitava em nós a abelha abandonada, pedias-me e
eu dizia-te Hoje não, Hoje não mãos, e a sopa diluía-se como as
nuvens cinzentas do mar do amor,
segunda-feira
segundo esquerdo,
segunda-feira morre a
paixão e eu tinha medo de desejar-te até morrerem todas as
palavras.
(ficção não revisto)