quinta-feira, 30 de abril de 2020

Um pouco mais de azul


Naquela tarde, a saudade alicerçava-se ao sorriso e, este, convalescente do medo, dava a mão à solidão, os pássaros brincavam nas janelas do silêncio, saltitavam como pedras envenenadas por uma laranja de mau-gosto, o amor,

- amas-me?

Como sempre, poisada nas escadas do sótão, a caneta de tinta permanente, às vezes cansada dos versos sem nome, sublinhava na escuridão as sílabas que apodreciam no jardim lá de casa,

- Tenho medo,

Dizia-me ela ao acordar,

E, no entanto, as almofadas continuavam suspensas na janela do sótão com fotografia para a noite, descia os cortinados, sentava-se no colchão envergonhado pelo sémen e, nada, apenas o cheiro intenso do alecrim, um pequeno ramo que o afilhado tinha deixado pela Páscoa,

- O folar, apelidavam-no de poema inverso, desplante manhã de Primavera, entre a agonia de um dia e a tristeza da noite, velhinha, folgaz, teimosa nas camadas finas de poeira que assombravam os móveis,

Mesmo assim, ao deitar, preparava um beijo, flores amargas, sonolentas, que a faca da cozinha laminava como drageias no imenso clarão da cidade,

- O Padre,

Bom dia, bom dia,

Que horas são?

Incêndios entre corpos carnívoros pelo cansaço do sexo, é tarde, dizia ela, e o amar entrava sempre sótão adentro,

- Estou longe,

O ausente, camuflado homem das tristes sobrancelhas, rabugento, feliz pelas palavras das abelhas e, todas as marés anoiteciam no falso ouro das grandes avenidas que circundavam o sótão da saúde, tenho medo,

- Amanhã o Inverno será tardio, o feriado, um pouco mais de azul, na poeira que adocica todas as palavras do dicionário, como sempre, a saudade, o amor, a paixão,

- A paixão come-se?

Às vezes, meu amor, às vezes come-se; outras, bebe-se.





Francisco Luís Fontinha

30/04/2020

terça-feira, 28 de abril de 2020

As fechaduras do cansaço


Sabes, meu amor,
As fechaduras do cansaço dormem nas tuas mãos,
Os pássaros, as abelhas, escrevem nos teus lábios de amêndoa o pólen da paixão,
E, as ribeiras, são canções de solidão,
Palavras envenenadas pelo vento,
A praia onde poisas o teu perfume.
Sabes, meu amor,
Os triângulos da saudade, a trigonometria da saudade,
O perfeito cansaço da manhã,
Quando nos teus braços me deito,
E, durmo docemente como um poema.
A noite veste-se de negrito acrílico,
Desenho-te, nua,
E, acredito que as montanhas têm paciência para me ouvirem.
Oiço as areias finas do Mussulo,
Os barcos e as caravelas,
Deitados na praia da infância,
A morte, regressa sem nome, idade ou sexo…
Sou assim, porque te amo,
Dentro destes livros calcinados pela ânsia de partir…
Chegar,
Ou sorrir.es, meu amor,
Sabes, meu amor,
As flores do nosso jardim, aquelas que plantamos na Primavera, cresceram, já falam e, gritam por ti; a fuga da serpente quando morre um triste cágado de suplante sargaço.
Sabes, meu amor,
A tristeza de te amar em silêncio,
Quando lá fora, tudo dorme,
E, não posso mais gritar; amo-te.
Ai… como são lindas as tulipas do teu cabelo,
Ai… como são lindos os abraços do teu sorriso…
E, no entanto, a noite cai sobre nós,
E, uma cama de sono nos espera.
As fechaduras são eternas.
 
 
Francisco Luís Fontinha
28/04/2020

terça-feira, 31 de março de 2020

O menino dos livros


Os livros dançam na paixão da manhã,
Envidraçada tempestade de areia,
O menino, sorri,
Canta canções de areia,
Grita,
Chateia.
O menino no circo,
De livro na mão,
Escreve um sorriso,
No chão,
Brinca, brinca com o livro de areia,
Não grita,
Agora,
Mas chateia.
O menino dos calções,
Correndo junto ao rio,
Em cio,
Em cio como as lâmpadas de néon.
Vende livros à porta da igreja,
Arrecada uns tostões,
Vai para o mar,
De bandeira na mão,
Deita-se na areia,
Já não chateia,
O menino dos livros,
Enquanto as gaivotas cantam,
E também elas gritam,
Canções de areia.
O menino está calmo,
Sereno com a tempestade,
Brinca, brinca na saudade,
Sem perceber,
Que nos livros,
Onde quer escrever,
Já não sonham;
Apenas brincam em canções de areia…
Nas canções de sofrer.


Francisco Luís Fontinha
31/03/2020

segunda-feira, 30 de março de 2020

O caixão do Adeus


Alguém morreu, pensei eu, o portão do cemitério aberto, os pinocos anti estacionamento colocados a preceito para que ninguém se alicerçasse ao pequeníssimo espaço, tudo sinal de que haveria um velório.
Parei, peguei num minúsculo cigarro de fumo, folheei o Jornal Público e, sobre as árvores o silêncio dos pássaros, alguns, adivinhando qualquer coisa de estranho, talvez eles já soubessem que alguém se tinha despedido da realidade e enveredado pela sinfonia do Adeus, perguntei-lhes
- Quem morreu?
Que não sabiam, tinham acabado de regressar de viagem e, verifiquei três o quatro pessoal, vestidas de negro, que pareciam esperar alguém,
- Temos medo, Senhor,
Medo, perguntei eu?
Do vento, diziam eles, medo do silêncio e, das amendoeiras em flor,
Percebo, percebo, mentalmente refazia-me do susto de alguém ter adormecido durante a noite e ninguém à sua espera quando regressasse,
- Sabe, Senhor?
A morte é triste,
Pára um carro funerário, lá de dentro sai um caixão escuro, vestido de tristeza, as poucas pessoas que o aguardavam, choravam, em silêncio e, o mar estava longe, poisei o Jornal, deitei no cinzeiro a beata que restava do meu alimentado cigarro, apetecia-me acompanhar o velório, mas não o fiz, fiquei sentado,
Um dos pássaros começou a cantar:

Capitalista de merda
Mete o dinheiro no cu
Dá o dinheiro ao operário
Que trabalha mais do que tu

Vai o enterro a passar
Foi a filha do operário
Que morreu a trabalhar

Fiquei incrédulo, não acreditava no que acabava de ouvir, entre lágrimas, alguém desenhou um finíssimo sorriso de sangue e, entre o sol, as flores aplaudiam como se o cansaço das lápides estivesse a terminar,
- Acabou, acabou disse-me ele,
E, tudo acaba; entre silêncios e lágrimas de chocolate.



Francisco Luís Fontinha
30/03/2020

domingo, 29 de março de 2020

A luz envelhecida da paixão


São horas.
Trago nos pulsos a terminante esperança de caminhar junto ao rio. As luzes das palavras são a caminhada para o futuro, já não tenho medo de caminhar, Paris é lindo, são os poetas, como eu, são os pintores, como eu e, os livros, como eu.
Também eu sou um livro, talvez a poesia tenha acordado em mim, já cá estava, sempre esteve, e agora, voltou a acordar. São horas são horas de caminhar em direcção ao caminho que sempre quis percorrer.
Tenho saudades, mãe, muitas saudades das tuas mãos, quando a colocavas no meu rosto, cinzento, fumegante dos cigarros envenenados e, o pai inventava lágrimas no meu olhar. As ruas estão recheadas de gente, bonita, nova, sempre a correr em direcção ao nada, com fome de escreverem na palma da mão o cansaço olhar da melancolia madrugada, já não tenho medo, mãe, já não tenho medo de amar, sorrir e, correr.
No entanto, às vezes, o poço que existia, deixou de existir, cansou-se de mim, morreu. Paris, mãe, Paris é linda, subi à torre Eiffel, quase que te encontrei, mas não estavas lá, ontem fui visitar uma igreja, coloquei uma vela por ti e pelo pai, sei que tu sabes que eu, o teu querido filho, não acredita em Deus, mas tu acreditas, mas o pai acredita, espero que gostes.
São 20:00 horas.
Comprei alguns livros, sobre o Louvre e sobre a cidade de Paris. Sabes, mãe, sou louco por livros, sabes, mãe, gosto de escrever, e escrevo-te deste sítio belo e encantado, todas as noites, e tu vais ajudar-me a vender os meus livros, os quadros e, no entanto, as palavras são o bálsamo da minha estória.
São 20:00 horas, a caneta expressa-se, vinga-se nas minhas mãos e, as palavras soltam-se como uma bala disparada por um canhão de espuma. Desenho-te no meu peito, escrevo-te, sinto as ruas desertas e não consigo adormecer com o silêncio das lâmpadas do desejo, oiço a voz das tristes alegrias e, por vezes, oiço a tempestade, e todos os livros dormem.
Que saudades do Pacheco. Meu querido Pacheco! Que saudades…
São horas. São horas de dormir, de comer, de passear em todos os caminhos, sempre em desespero de conseguir acompanhar o sofrimento da minha alma. Os pássaros, mãe, os pássaros que habitam na minha mão e, talvez estas palavras sejam o princípio de uma história, um velho poema amarrotado, um silêncio disperso na madrugada ou, nada.
Que saudades, meu querido Luiz Pacheco, que saudades das tuas palavras, palavras que absorvo com a saudade, com o medo, da noite, e é na noite que me perco nestas ruas esfomeadas de luz.


Francisco Luís Fontinha
Paris, 07/03/2020


(…)

Um par de cornos, um avental e uma faca do tamanho de um beijo, uma merda, a minha vida, a dela e a vida de quem não dorme…
Conhecia-a numa noite de Inverno, no planalto do desassossego habitavam as planícies da solidão, dias a fio encurralado numa jaula, à janela tinha a companhia da Gaivota Desejo, conheci-a numa noite de Inverno enquanto acendia a lareia, confesso, nunca tive, não tenho… apetências para lareiras, o meu caso é mais de insónias, tardes confusas
Confusas?
Sim, confundo o triste olhar do céu com os beijos da geada, sim, confundo os plátanos nus com a tua nudez… e que desperdício, o desgosto de acordar tarde, e tu
Sofrias de sinusite aguda, durante a noite não dormias, já dormes, meu querido? Não, não durmo, e de sinusite aguda transformou-se numa loba, tinha asas e voava sobre o Tejo,
E tu, e tu acreditavas que eu era marinheiro de profissão, tinha dois filhos e morava num cubículo recheado de velharias, alguns livros, dois ou três pratos e uma colher, a sopa infestada de sono, a sopa entranhada entre o ontem e o amanhã, não, não meu querido, não acredito numa só palavra tua,
Confusas?
Distantes e abstractas todas as minhas manhãs, conheci-a numa noite de Inverno, algas mortas, as profundezas da palavra acorrentada à lareira, bêbado, sou bêbado… cambaleava sobre a areia fina do destino, tinha dois filhos e morava num cubículo recheado de velharias, alguns livros, dois ou três pratos e uma colher, a sopa infestada de sono, o sono enfestado de sopa, e nunca vi o mar, meu querido, o mar…
Durmo!
À meia-noite regressava o eléctrico, descalça com os sapatos de salto alto suspensos no cansaço, vomitavas as dores do teu camuflado esqueleto pela manhã, vomitavas
Ela já foi dormir…
Vomitavas todos os gemidos da Sinfonia da paixão, acreditas, meu querido?
Fui despedido
Durmo! Ela foi dormir, ela quase nem me olhou
Boa noite…
Fui despedido e agora vou viver de esmolas e serviçais serviços, boa noite, ela já foi dormir, fui despedido como são despedidos todos os poetas, dizem que as mulheres têm o prazer de despedir poetas,
Foda-se o poema,
Boa noite…, nada mais, boa noite e partiu sem deixar rasto, algumas roupas, uma pequena pasta com alguns papeis e uma esferográfica, talvez comece a escrever, escrever-me definitivamente com o meu nome, endereço e rua,
Ela partiu, boa noite, cansaço o caraças…,
Um par de cornos
O caraças, tu andas é com algum Mânio, iletrado, dormir, fui despedido acreditando que levaria a vida de escritor,
Uma merda, escrevo uma merda e merda
Um par de cornos, um avental e uma faca do tamanho de um beijo, uma merda, a minha vida, a dela e a vida de quem não dorme…
A via não regressa mais aos teus braços, meu amor, sentíamos os gonzos da insónia acorrentados aos nossos lábios, o dia consegue alimentar-se das ardósias sonsas do olhar, a noite envergonha-se nos nossos medos, de amar, ser amado, amarmo-nos sem percebermos que amanhã o amor é uma lápide de lágrima, tive um sonho esta noite, estávamos sentados na saudade
Saudade, meu amor? Sim, sim meu amor, sentados na saudade, as cancelas da morte entreabertas, sentados na saudade,
Amanhã, meu amor, os pássaros brincando na janela virada para a Quinta, ao fundo o Rio, o Douro envergonhado galgando os socalcos do desejo, a vida
Não, não regressa mais aos teus braços
Meus amor?
Sim, claro, amanhã, amanhã sentiremos o odor dos sufixos aprisionados ao Dicionário da paixão, a encosta, o medo de perder-te, meu querido, enquanto lá fora a noite vomitava fotografias da tua infância,
Saudade?
Os brinquedos, os primeiros beijos e cartas de amor, o papel, os poemas em pequenos suicídios, milímetros de suicídio, aos poucos, a partida, o Adeus, a brincadeira,
Não, não meu amor, amanhã não
Não consigo absorver-te como te absorve a noite, as laminadas fragâncias enferrujadas no cabelo da invisível maré de Azoto,
Saudade?
Os brinquedos…


(…)

Francisco Luís Fontinha
In “Amargos lábios do Poema”

Livros de Francisco Luís Fontinha



sábado, 28 de março de 2020

Necrologia


O tempo que passa,
Desassossega o desespero,
Finto a vaidade,
Perco o emprego,
Vagueio na distância,
Ilumino-me,
E, perco-me no cansaço dia.
Tenho pena,
Daqueles que por lá passaram,
E, desavergonhadamente,
Lá continuam,
Esperando as pedras que caiem do silêncio,
Aos poucos,
Em cio,
Os pássaros loucos,
No desvaneio da solidão.
O tempo passa,
A fome aperta,
Neste desespero acontecimento,
Dos novos marinheiros,
Entre sexos e chapas de zinco,
O rio, comem-me,
Quando a maré se abraça ao cansaço.
Todas as vezes, algumas, o tempo passa,
O mar envaidece-se de sonolências madrugadas,
Calcárias manhãs de Primavera,
Ao deitar,
Sobre o travesseiro da insónia,
Esqueço-me de acordar,
Tomo café, todos os dias,
E, vejo no jornal, a minha foto,
Necrologia,
Perdidos e achados,
Despeço-me,
Até logo,
Abraços.


Francisco Luís Fontinha – Alijó
28/03/2020