(…)
Um
par de cornos, um avental e uma faca do tamanho de um beijo, uma merda, a minha
vida, a dela e a vida de quem não dorme…
Conhecia-a
numa noite de Inverno, no planalto do desassossego habitavam as planícies da
solidão, dias a fio encurralado numa jaula, à janela tinha a companhia da
Gaivota Desejo, conheci-a numa noite de Inverno enquanto acendia a lareia,
confesso, nunca tive, não tenho… apetências para lareiras, o meu caso é mais de
insónias, tardes confusas
Confusas?
Sim,
confundo o triste olhar do céu com os beijos da geada, sim, confundo os
plátanos nus com a tua nudez… e que desperdício, o desgosto de acordar tarde, e
tu
Sofrias
de sinusite aguda, durante a noite não dormias, já dormes, meu querido? Não,
não durmo, e de sinusite aguda transformou-se numa loba, tinha asas e voava
sobre o Tejo,
E
tu, e tu acreditavas que eu era marinheiro de profissão, tinha dois filhos e morava
num cubículo recheado de velharias, alguns livros, dois ou três pratos e uma
colher, a sopa infestada de sono, a sopa entranhada entre o ontem e o amanhã,
não, não meu querido, não acredito numa só palavra tua,
Confusas?
Distantes
e abstractas todas as minhas manhãs, conheci-a numa noite de Inverno, algas
mortas, as profundezas da palavra acorrentada à lareira, bêbado, sou bêbado…
cambaleava sobre a areia fina do destino, tinha dois filhos e morava num
cubículo recheado de velharias, alguns livros, dois ou três pratos e uma
colher, a sopa infestada de sono, o sono enfestado de sopa, e nunca vi o mar,
meu querido, o mar…
Durmo!
À
meia-noite regressava o eléctrico, descalça com os sapatos de salto alto
suspensos no cansaço, vomitavas as dores do teu camuflado esqueleto pela manhã,
vomitavas
Ela
já foi dormir…
Vomitavas
todos os gemidos da Sinfonia da paixão, acreditas, meu querido?
Fui
despedido
Durmo!
Ela foi dormir, ela quase nem me olhou
Boa
noite…
Fui
despedido e agora vou viver de esmolas e serviçais serviços, boa noite, ela já
foi dormir, fui despedido como são despedidos todos os poetas, dizem que as
mulheres têm o prazer de despedir poetas,
Foda-se
o poema,
Boa
noite…, nada mais, boa noite e partiu sem deixar rasto, algumas roupas, uma
pequena pasta com alguns papeis e uma esferográfica, talvez comece a escrever,
escrever-me definitivamente com o meu nome, endereço e rua,
Ela
partiu, boa noite, cansaço o caraças…,
Um
par de cornos
O
caraças, tu andas é com algum Mânio, iletrado, dormir, fui despedido
acreditando que levaria a vida de escritor,
Uma
merda, escrevo uma merda e merda
Um
par de cornos, um avental e uma faca do tamanho de um beijo, uma merda, a minha
vida, a dela e a vida de quem não dorme…
A
via não regressa mais aos teus braços, meu amor, sentíamos os gonzos da insónia
acorrentados aos nossos lábios, o dia consegue alimentar-se das ardósias sonsas
do olhar, a noite envergonha-se nos nossos medos, de amar, ser amado, amarmo-nos
sem percebermos que amanhã o amor é uma lápide de lágrima, tive um sonho esta
noite, estávamos sentados na saudade
Saudade,
meu amor? Sim, sim meu amor, sentados na saudade, as cancelas da morte
entreabertas, sentados na saudade,
Amanhã,
meu amor, os pássaros brincando na janela virada para a Quinta, ao fundo o Rio,
o Douro envergonhado galgando os socalcos do desejo, a vida
Não,
não regressa mais aos teus braços
Meus
amor?
Sim,
claro, amanhã, amanhã sentiremos o odor dos sufixos aprisionados ao Dicionário
da paixão, a encosta, o medo de perder-te, meu querido, enquanto lá fora a
noite vomitava fotografias da tua infância,
Saudade?
Os
brinquedos, os primeiros beijos e cartas de amor, o papel, os poemas em
pequenos suicídios, milímetros de suicídio, aos poucos, a partida, o Adeus, a
brincadeira,
Não,
não meu amor, amanhã não
Não
consigo absorver-te como te absorve a noite, as laminadas fragâncias
enferrujadas no cabelo da invisível maré de Azoto,
Saudade?
Os
brinquedos…
(…)
Francisco
Luís Fontinha
In
“Amargos lábios do Poema”
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