Mostrar mensagens com a etiqueta S. Pedro do Sul. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta S. Pedro do Sul. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 29 de março de 2013

O miúdo das janelas sem imagens

foto: A&M ART and Photos

Suspensa,
(preciso de viver dentro dos orifícios das paredes de linho)
Eu, suspensa entre uma nuvem azul e um sorriso encarnado, eu, sentada sabendo que o degrau onde me sento está literalmente,
(morto?)
Submerso na tua mão de borboleta com asas de veludo, ouvem-se-lhes lágrimas de pérola caírem dos pinheiros bravios de Carvalhais, e o miúdo à janela pinta o céu nocturno de cinzento, coloca uma árvore na terra funda onde o avô construiu o poço, e da morte ouviam-se-lhes motores engasgados em neblinas cansadas, tristes, como o vento depois da tempestade, o miúdo chorava, e imaginava cansaços nos esteiros onde se seguravam os braços das videiras e dos arames desciam gotinhas curvas de dor, sofrimento convertido em mármores da sepultura do livro embainhado nas ruas frias da aldeia, submerso
(suspensa, infeliz, apaixonadamente apaixonada pela noite das aves pintadas de amarelo)
Perdi-me em ti, murmurava o miúdo à janela com vista para a casa do tio Serafim, havia livros espalhados pelo quarto, e todos na casa dormiam, até a própria iluminação ténue que se fazia sentir por aquelas bandas, não pensava em nada, apenas
(imaginar-te no largo junto às palmeiras abraçada ao espantalho de carne como um estranho nome... talvez, qualquer coisa Francisco, foi há tanto tempo, perdão, esqueço-me das coisas, dos nomes, das imagens, e quando preciso, urgentemente recorro ao álbum fotográfico, mas lembro-me que rasguei a tua fotografia, imagino como serás hoje, como dormirás hoje, Engordaste? Emagreceste? Estás mais alta, mais baixa, ou... assim-assim, esqueci também as palmeiras, o largo, não consigo precisar o diâmetro do largo, e o cheiro, Como será hoje o cheiro dela?)
Apenas os ratos em volta da caixa da farinha de milho, para os animais, para o fabrico do saboroso pão no forno a lenha, e nada mais, nem os latidos de um cão, que perdão, também lhe esqueci o nome, a idade, a raça, a crença, se existia alguma crença, e no entanto, ao longe, ouviam-se-lhes os sons frágeis do sino da Igreja,
(vivi sobre rochas de areia)
Sou eu, dizia-lhe o rapaz suspenso na janela da noite, suspensa ela também, sentada eu, sentada sobre um degrau moribundo, triste e doente, ele sente o peso do meu corpo e acaricia-me as nádegas húmidas responsáveis pela chuva dos últimos três dias de vida, (poiso os cotovelos no parapeito, todos dormem, e todos sonham que amanhã as nuvens azuis já não são azuis, e os tramados sorrisos encarnados, não, não se vão transformar em bolas de Berlim, não, os sorrisos encarnados vão esconder-se entre o milho e o feijão, porque o avô semeava milho e no meio colocava feijão, e quando o feijão crescia, agarrava-se ao caule do milho, e crescia, crescia, e crescia até chegarem ao céu...) e continuava a perguntar-se
Como vão ser os últimos três dias de vida? (vivi sobre rochas de areia)
(das abelhas?)
Vive-se, vive-se inventando janelas, vidros, paisagens, sorrisos, nuvens, vive-se acorrentado a um degrau de mármore com coração de aço, frio, tão distante o largo das palmeiras, e hoje como será o chafariz nas traseiras da coluna vertebral silenciosa da menina? (imaginar-te no largo junto às palmeiras abraçada ao espantalho de carne como um estranho nome... talvez, qualquer coisa Francisco, foi há tanto tempo, perdão, esqueço-me das coisas, dos nomes, das imagens, e quando preciso, urgentemente recorro ao álbum fotográfico, mas lembro-me que rasguei a tua fotografia, imagino como serás hoje, como dormirás hoje, Engordaste?) qual das meninas? e os pássaros das nocturnas noites de Carvalhais não sabiam, e desconheciam, que existiam mais do que uma menina, e tal como eu, o miúdo com os cotovelos no peitoril a imaginar barcos a dirigirem-se de Carvalhais para o porto de Favarrel, e perdiam-se a meio caminho, e alguns, a grande parte deles
(naufragavam contra o canastro recheado de milho até ao tecto)
Não sobrevivia, e morriam.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 14 de março de 2013

Fascinava-me... e nós

Chega, como todas elas disfarçadas de leão, ou andorinha, ou gaivota, conversávamos debaixo das cerejeiras mergulhadas nos olhos tristes, negros, que às vezes também sofrem, dormem, voam sobre o xisto em lençóis de vento, fatias de madrugada, migalhas concentradas na água mineral da pobreza, sabia-o, quando aparecias dentro da minha mão, saborosa, a sua boca convexa, cinzenta, com mordeduras de marfim nos finais de tarde junto ao Tejo, conversávamos
Sabias que hoje o Gonçalves se vai casar?
Não, não sabia, e tenho a certeza que é a primeira vez que oiço tal coisa, casar o Gonçalves? Hum... só vendo com estes dois olhinhos de cereja com chocolate, ora essa... o Gonçalves,
Ora essa, chega, como todas elas disfarçadas de leão, cobras e lagartos, em cima da mesa velha em madeira recheada com o bicho e a teia de aranha da vizinha Manuel, e tal coisa, diga-se, juro que não vi nada, juro que nunca me deitei na cama dele, nem em sonhos
Nem em sonhos, suas desgraçada?
Juro, juro madrinha, juro
Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo, o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se
Rudolf Nureyev,
E o silêncio entranhava-se-me como as primeiras palavras que ouvi, e o mar batia-nos à porta, abríamos-a, e ele entrava, o corpo dele parecia construído em fibra de carbono aerodinâmicamente adormecida nas clausuras dos grandes desenhos que ficaram expostos no barco em esferovite com um motor de um carro a pilhas, uma hélice de sílabas saboreava o estômago feliz do tanque onde as meninas iam lavar a roupa, e nós, rapazolas traquinas, sujávamos a roupa a corar silenciosamente poisada sobre as ervas filhas de Deus, e nós
Rudolf Nureyev, fascinava-me...
E nós
(juro, juro madrinha, nunca fui com ele para a cama), e nós deitávamos a cabeça no sono do vento, abraçávamos-nos como se abraçavam as plantas do jardim da tia Clementina, que Deus a tenha em bom descanso, e eu, armado em camelo, acreditei
Que hoje casava o Gonçalves, e afinal, não casou, e afinal, tudo um conto transformado em pesadelo, a noite desceu e levou-o até ao Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, e o meu rosto mais parecia um óbito do que uma criança acabada de regressar do infinito, com uma pesadíssima mala indesejada, feia, mórbida, torrencialmente vestida de prateado, e lá dentro
Coisas, coisas de uma criança,
E lá dentro,
Nem em sonhos, suas desgraçada?
Juro, juro madrinha, juro
Apaixonei-me por bailarinos e bailarinas, em miúdo, o meu ídolo chama-se, e vá lá saber-se porquê, chama-se
Rudolf Nureyev,
E lá dentro, alguma camisetas, calções, um par de sapatos, um par de sandálias, três ou quatro bonecos, um avião e um barco, e lá dentro, coisas, muitas, poucas, desgraçada
Juro,
E apenas encostei a minha cabeça no seu ombro, madrinha, só isso, e nada mais,
E achas pouco?
Havia mandíbulas de areia com espinafres, sobre o soalho de pano brincava um longo triângulo com três olhos de cereja com chocolate, estão a ver?
Aqueles olhinhos como os da Alice, sim, a Alice Silvestre, ora não sabem quem é..., a Alice, porra, a que vive no final da rua junto ao fontanário, quem desce do lado esquerdo as escadas para o talude dos orgasmos, uma flor de terra salgada emerge do longínquo cilindro de granito, estão a ver?
A que tem três galinhas e um galo? Sim, essa, essa mesmo, nem mais, que coisa, para perceberem uma simples asa de borboleta fazem cá um espectáculo que até parecem o
Rudolf Nureyev,
Entre sonhos e birras de infância,
E eu ouvia-os
Francisco come a sopa,
E ele
Ouvia-os como ouvem os mercadores que se passeiam pelas avenidas desesperadas da cidade com cadeados de seda e sombras de linho, e ela, a querida Alice, não chorava, e a outra, a afilhada, chorava desejando que desejava
Repetir,
Apenas,
Deitar a cabecinha no ombro dele...
Sem que a dita madrinha soubesse, como nunca o sabem, as pessoas que trabalham como espantalhos nos campos de milho de Carvalhais, e era eu, eu que desenhava círculos no rabo de uma agulha e depois
chorava,
E queria ser como o
E depois,
Como o chorava dos vidros e dos pregos de aço, quando derretiam os cubos de manteiga pasteurizada que a avó Silvina trazia da loja, uma tasca que de vinho, também vendia, pão, manteiga, arroz e feijão...
E saudades de ontem.

(ficção não revisto)
Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Ou o pai retratava o filho

(    )
Juro, se fosse hoje, se fosse hoje inventava-me, colocava umas luzinhas na cabeça, pedia ao senhor Arsénio que me desenhasse umas asas e mandava-as construir ao tio Serafim, quando regressasse a casa com a estrelada, coitada, manca
Estrelada!
E amanhã não me fodes mais porque vais ficar na loja porque com a pedrada que te dei, e enquanto isso, o Serafim a jogar ao pino com os colegas da escola, e tenho quase a certeza que ele me constrói umas asas com vista para o Tejo, pensava o menino Pedro antes de adormecer e enquanto a família, pai, mãe e avós, todos, numa irritação
É a tua cara Alberto,
Não é não, respondia a avó Madalena, e acrescentava
É tal e qual o meu João, isso não tenho duvidas
E eu, e eu tenho a certeza que tenho algumas parecenças com um embondeiro, com um mabeco, ou na pior das hipóteses
Com um Anjo,
(mais uma breve pausa para ir à casa de banho regressamos o mais breve possível)
Sim, com um Anjo, Porque não? Deve estar louco menino Pedro, queixava-se o porteiro embriagado quando madrugada dentro ele
Eu, tu, regressávamos das longínquas sentinelas de estanho, deixávamos as mesas de granito junto aos jardins caquécticos da casa de S. Pedro do Sul
Constipação
Ou
Fígado,
Constrói-me umas asas, tio Serafim
E a coitada da estrelada só em três patas, sofreu tanto, tanto sofrimento teve esta ovelha, e o menino Pedro e a menina Margarida
Eu, tu, regressávamos das longínquas sentinelas de estanho, deixávamos as mesas de granito junto aos jardins caquécticos da casa de S. Pedro do Sul, deixara de chover, o fígado pifou uma vez mais, constipação
Ou
O pai retratava o filho com imagens a preto e branco, no tornozelo uma fitinha azul com o nome e o dos progenitores, e se fosse hoje, e se fosse hoje juro
Tinha-me inventado.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado

Poucas coisas me importam,
não me importando sequer que um rio de sumo de laranja corra na minha aldeia, não me importando sequer que metade de uma laranja que com o seu sumo serviu para alimentar o rio que corre na minha aldeia, não me importando sequer que eu viva numa aldeia, não me importando que eu habite numa cabana longe da minha aldeia, no cimo da montanha, poucas coisas me importam

- o meu filho deixou de se importar com as sombras dos pinheiros de Carvalhais, o meu filho deixou de se importar com a eira de Carvalhais, onde se sentava sobre as lajes graníticas a ouvir o telintar dos pássaros dentro da sombra dos pinheiros, o meu filho, que deus o tenha, deixou de se importar com os livros e com as coisas, que coisas mãe?, coisas tuas, coisas minhas, coisas dos teus irmãos, coisas que ficaram na eira de Carvalhais, onde estão os meus irmãos?, coisas, coisas dele,

coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando-me importo-me com as laranjas que depois do sumo são o rio onde me sento no final da tarde a contar as traineiras que vêm e vão, subtraio as que não regressaram, e também eu

- não quero regressar, e nunca gostei de relógios de pulso, de relógios de parede, das igrejas com relógios e sinos, e detesto os relógios de sol, e se eu pudesse

sempre noite, sempre geada, sempre uma cidade incendiada pela saudade dos arrepios que o vento transporta do outro lado da ravina, a ponte em madeira está doente, caquética, precisa de drageias para adormecer e de vitaminas para engordar, está grávida, dizem que é uma menina e deve, possivelmente, talvez

- nascer em Janeiro,

talvez de vitaminas, radiografias ao pulmão esquerdo, o senhor está uma lastima, eu doutor? Não o vizinho do terceiro esquerdo, claro que é o senhor,

- nascerá em Janeiro, parabéns,

mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

- estás mais gordo meu querido filho,

vê? Percebe agora porque poucas coisas me importam? Coisas que pouco me importam, importo-me com a noite e com a cidade arrumada e sempre com os lençóis esticados, importando importo-me com os pinheiros adormecidos em Carvalhais e extintos com a passagem das horas

- percebe agora porque detesto todos os relógios doutor? Não sei, talvez, o pior é respirar, dói-me Às vezes, outras importo-me com o sumo de laranja da metade da laranja esquartejada pelas mãos da minha mãe, Queres com açúcar?, e os meus irmãos, não percebo, percebo, fugiram, morreram, desertaram antes de nascerem, abaixo-assinado, nós os filhos da mãe

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- importo-me não me importando que as letras se vistam de números, e depois em relógios, um livro transformar-se-há em guilhotina amovível com o ponteiro dos segundos bem afiado, e afianço-lhe dona Amélia que o seu menino está bem dos pulmões, algumas drageias e nada de relógios de pulso, nada, absolutamente nada, abstinência de relógios, e lá um copito às refeições tudo bem, não é importante,

vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

- mas eu bem doutor, deve ser engano, só pode ser engano, até engordei

diz-lhe mãe!,

- não me importo mas importo-me com as acácias sem dono que caminham durante a noite na cidade proibida, não me importando mas importo-me que amanhã tenhas lágrimas nos teus olhos, porque quando os meus irmãos desaparecem depois de cair a noite, a dona Amélia

diz-lhe mãe!,

- vê doutor, o que será deste desgraçado sem mim...

cuidado com os relógios, principalmente os de pulso.


(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 30 de abril de 2012

A tarde


Não conheço a menina de lado algum, tão pouco a matrafona que a acompanha,
- Olá eu sou o Vasco, Qual Vasco “Caralho”?, E que eu saiba não existe nenhum Vasco na minha vida, e não entendo a razão destes dois parvalhões, durante a noite, descerem até mim e entrarem nos meus sonhos,
A menina aproxima-se, aproxima-se em silêncios de amêndoa quando a primavera rompe as montanhas e do rio ensanguentado de pólen uma abelha saltita à procura das sílabas do mar, o parvalhão do Vasco olha-me entre dois pedaços de marmelada e queijo de cabra, oiço da fazenda contigua ao palheiro os gemidos do bode, Raios o partam Grita a menina de mão dada ao Vasquinho,
- Qual Vasco “Caralho”?,
O chibo irritado às marradas contra o canastro plantado no canto esquerdo da eira, sento-me e começo a sentir a afamada comichão dos resíduos do milho, imagino o meu avó, imagino o tio Serafim, imagino os velhos com esqueletos transparentes às voltas com o malho, e uma finíssima poeira entra dentro de mim,
- E por instantes esqueço os dois parvalhões que me visitam durante a noite, a menina e o Vasquinho, e em frente ao espelho do guarda-fato vejo-me em Carvalhais – S. Pedro do Sul, e oiço o bater do malho na eira, e em gestos desorganizados digo ao meu avó Domingos (que se enervava com o nome porque dizia que Domingos era nome de preto e que todos os pretos se chamavam Domingos), e digo ao meu avó Domingos que para a tarde terminar em beleza apenas faltam os Fingertips, Que tal Avó?,
É o que eu te digo meu filho Arranja uma gaja rica, E calo-me porque não foi isso que lhe perguntei, E calo-me porque essas coisas de riqueza...,
- Prefiro mesmo ouvir os Fingertips,
Portanto à questão do porquê da visita de dois parvalhões durante o meu sonho, a menina e o Vasco,
- Olá Eu sou o Vasquinho!,
Qual Vasco “Caralho”? Arranja mas é uma gaja rica e deixa-te de “merdas”.


(texto de ficção não revisto)

domingo, 8 de abril de 2012


Nunca escondi ter uma paixão (não secreta) pelos Fingertips. Porque gosto muito das músicas deste grupo, porque tenho descendência em Carvalhais – S. Pedro do Sul.
Dia 26 de Abril de 2012 em Mirandela no Auditório Municipal.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sou feliz Mãe

Poiso a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraça-se-me,
- Volto já E nunca mais regressou desde a noite que saiu apressadamente para comprar cigarros,
Abraça-se-me e dizem que dorme na rua de uma cidade de um qualquer país inventado debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Volto já E nunca mais o vi e nunca mais senti sobre o meu braço a mão trémula que quando consumia cigarros junto ao rio evaporava-se e abraçava-se-me como aquele sorriso que acordava da tela deserta na noite que apressadamente saiu para comprar cigarros,
Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria,
- Sou feliz Mãe Pensava eu antes de adormecer e claro que tudo mentira,
Paralelepípedos de miséria E tudo mentira Eu mentira As ruas da cidade Mentira Os cigarros mentira,
- Sou feliz Mãe,
Tudo mentira exceto as noites debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Sou feliz Mãe Os cigarros mentira,
Desciam as estrelas embrulhadas num finíssimo manto de geada que entranhava-se-me nas dobradiças ferrugentas made in Cinha e que algumas noites depois de usadas pareciam as rodas do carro de bois do tio serafim pela calçado do outeiro,
- Amarela Raios te fodam,
E tudo mentira Exceto as noite debaixo de cartões e jornais fora de validade e os bois do velho serafim,
- Amarela Raios te fodam,
E as ruas inventadas onde dormiam homens nos paralelepípedos de miséria, e ao longe, ao longe a amarela com vinte e quatro luzinhas suspensas nos cornos e o serafim Amarela Raios te fodam,
- Miséria Raios te fodam,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, um sorriso renasceu e abraçou-se a mim, e ao longe, e ao longe o pobre do serafim sentado na eira a contar as espigas de milho antes de adormecerem,
- Caralho Faltam-me duas,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria, Poisou a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraçou-se-lhe e nunca mais voltou e dizem que caminha nos paralelepípedos de miséria embrulhado em jornais fora de validade e com vinte e quatro luzinhas nos cornos,
- Amarela Raios te fodam,
E claro que sou feliz Mãe e claro que
- Não percebi Mãe?,
E claro que comi a sopa e tenho-me agasalhado e se for necessário Como? Não mãe E se for necessário arranjo mais jornais e cartões
- Estás a mentir-me…
Arranjo mais jornais e cartões Sabe Mãe, Não percebi Mãe?, Só tenho medo que as ruas desta cidade com paralelepípedos de miséria deixem de existir,
Porque cartões e jornais fora de validade consigo eu arranjar Tenha eu assim ruas por onde caminhar, Sabe Mãe?,
- Caralho Faltam-me duas,
E o serafim cerrava as cortinas da noite, descia pausadamente o caminho até casa, entrava silenciosamente no curral para desligar as vinte e quatro luzinhas penduradas nos cornos da amarela, subia as escadas e
- A lâmpada do quarto começava a tossir e a engasgar-se até que se extinguia junto à ramada da casa do avó domingos E eu de livro na mão à espera que o tio serafim desligasse o moinho elétrico e a lâmpada voltasse a si depois de uns minutos desmaiada,
E ligava o moinho e pegava num copo de verde e cantava até adormecer.

(texto de ficção)