quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Sou feliz Mãe

Poiso a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraça-se-me,
- Volto já E nunca mais regressou desde a noite que saiu apressadamente para comprar cigarros,
Abraça-se-me e dizem que dorme na rua de uma cidade de um qualquer país inventado debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Volto já E nunca mais o vi e nunca mais senti sobre o meu braço a mão trémula que quando consumia cigarros junto ao rio evaporava-se e abraçava-se-me como aquele sorriso que acordava da tela deserta na noite que apressadamente saiu para comprar cigarros,
Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria,
- Sou feliz Mãe Pensava eu antes de adormecer e claro que tudo mentira,
Paralelepípedos de miséria E tudo mentira Eu mentira As ruas da cidade Mentira Os cigarros mentira,
- Sou feliz Mãe,
Tudo mentira exceto as noites debaixo de cartões e jornais fora de validade,
- Sou feliz Mãe Os cigarros mentira,
Desciam as estrelas embrulhadas num finíssimo manto de geada que entranhava-se-me nas dobradiças ferrugentas made in Cinha e que algumas noites depois de usadas pareciam as rodas do carro de bois do tio serafim pela calçado do outeiro,
- Amarela Raios te fodam,
E tudo mentira Exceto as noite debaixo de cartões e jornais fora de validade e os bois do velho serafim,
- Amarela Raios te fodam,
E as ruas inventadas onde dormiam homens nos paralelepípedos de miséria, e ao longe, ao longe a amarela com vinte e quatro luzinhas suspensas nos cornos e o serafim Amarela Raios te fodam,
- Miséria Raios te fodam,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, um sorriso renasceu e abraçou-se a mim, e ao longe, e ao longe o pobre do serafim sentado na eira a contar as espigas de milho antes de adormecerem,
- Caralho Faltam-me duas,
E tudo porque numa noite, de uma tela deserta e encostada à parede, Fora de validade as ruas engasgadas nos paralelepípedos de miséria, Poisou a mão sobre a tela deserta e um sorriso abraçou-se-lhe e nunca mais voltou e dizem que caminha nos paralelepípedos de miséria embrulhado em jornais fora de validade e com vinte e quatro luzinhas nos cornos,
- Amarela Raios te fodam,
E claro que sou feliz Mãe e claro que
- Não percebi Mãe?,
E claro que comi a sopa e tenho-me agasalhado e se for necessário Como? Não mãe E se for necessário arranjo mais jornais e cartões
- Estás a mentir-me…
Arranjo mais jornais e cartões Sabe Mãe, Não percebi Mãe?, Só tenho medo que as ruas desta cidade com paralelepípedos de miséria deixem de existir,
Porque cartões e jornais fora de validade consigo eu arranjar Tenha eu assim ruas por onde caminhar, Sabe Mãe?,
- Caralho Faltam-me duas,
E o serafim cerrava as cortinas da noite, descia pausadamente o caminho até casa, entrava silenciosamente no curral para desligar as vinte e quatro luzinhas penduradas nos cornos da amarela, subia as escadas e
- A lâmpada do quarto começava a tossir e a engasgar-se até que se extinguia junto à ramada da casa do avó domingos E eu de livro na mão à espera que o tio serafim desligasse o moinho elétrico e a lâmpada voltasse a si depois de uns minutos desmaiada,
E ligava o moinho e pegava num copo de verde e cantava até adormecer.

(texto de ficção)

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