quinta-feira, 7 de julho de 2022

Estas almas mortas que dançavam em nós, querida libertina

 

Perdias-me enquanto o mar entrava pela janela, e do silêncio das pedras, ouvíamos as palavras parvas das tardes de orvalho. Sabíamos que da noite ressuscitaria o poema que anos mais tarde se suicidaria nas velhas planícies das sílabas ensonadas.

E mesmo assim, perdias-me.

Levantávamos as estátuas embriagas que do jardim escutavam os gemidos nocturnos das marés em flor, depois, dançávamos até que o luar descia madrugada abaixo e,

Dançávamos,

E víamos os barcos em pequenas brincadeiras metalomecânicas que ainda hoje vagueiam nas esplanadas que só o rio sabia desenhar.

Dançávamos,

Até que o teu esqueleto de prata se fundia nas mãos do silêncio; acabava a noite quando lá longe, muito longe, a corda da solidão percebia que seria o último beijo.

Estou aqui. Estou acolá. E dançávamos até que acordava o penúltimo poema do desejo.

De pão, nada tínhamos. Mas tínhamos as pedras para amar. Mas tínhamos nas mãos o testamento segundo o seu último desejo; que nós fossemos sempre criança.

Crescemos, crescemos…

E ainda hoje somos crianças de farrapos.

Perdias-me enquanto o mar entrava pela janela, perdias-me enquanto a maré assassinava os teus seios numa tela cansada de luz,

Amém,

Que hoje gritam as almas mortas; assim seja, Nikolai Gogol. Que assim seja.

Porque dançávamos depois do banho, quando o mar entrava pela janela.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 7/07/2022

terça-feira, 5 de julho de 2022

Madrugadas em flor

 

Não sabíamos que a tempestade regressava da tua mão. Não sabíamos que em cada sorriso, o teu, habitava uma pequena nuvem de desejo. Não sabíamos que as pedras semeadas na superfície do teu corpo, as palavras entre parenteses, depois de lidas, voavam em direcção às cansadas mãos do criador e, mesmo assim, depois da chuva, levantavam-se do chão, em lágrimas, os silêncios nocturnos das sanzalas adormecidas.

Tínhamos nas palavras escritas, dentro de um pequeno cubo em vidro, as flores amarguradas das distantes marés do paraíso.

Desenhava o teu corpo sempre que a chuva descia montanha abaixo, depois, limitava-me a escrever no chão húmido da alvorada a palavra amo-te,

Sabendo que em cada muro da cidade,

Um grito em revolta.

Uma enxada vergada pelo cansaço, uma flor em flecha contra o poema que nascia nas amoras em flor, ambas envergonhadas, ambas desgovernadas pelo silêncio da tarde, desciam as escadas da solidão, depois de partir a noite, acreditando que os poemas nasciam durante as tempestades nocturnas sem luar.

E não sabíamos que a tempestade regressava da tua mão. Não sabíamos que em cada sorriso, o teu, habitava uma pequena nuvem de desejo que pé-ante-pé dançava nas escadarias que apenas a solidão conservava para mais tarde fotografar; e tínhamos nas pedras, nos anzóis da solidão, do pequeno parágrafo desalinhado, todas as tristes madrugadas entre o desejo que abraçava o teu corpo e o beijo; ai o beijo, menina!

 

Descias as madrugadas em flor,

Descias as distantes cinzentas manhãs de inferno,

Descias da boca, quando o beijo mergulhava

Na solidão nocturna da dor;

Descias às noites de Inverno

Que no beijo dançava.

 

Ai o beijo, menina!

E tínhamos na algibeira o silêncio entre gemidos e lágrimas, e tínhamos nos poemas a boca entre o beijo e a alvorada, e tínhamos na mão, ou tínhamos no silêncio, as tempestades do infinito.

E tínhamos o beijo embrulhado nas nossas bocas, quando envergonhadas, levitavam como um carrossel em direcção ao olhar de uma criança.

 

 

Alijó, 5/07/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 4 de julho de 2022

As tulipas negras do Inverno nosso

 

Perdidas, cansadas de habitar a prateleira superior dos sonhos, as tulipas negras antes de adormecer, lêem um poema de AL Berto. Sob o sonâmbulo tecto da alvorada e, após o silenciar de todas as sílabas, começam a ouvir, aos poucos, os pedacinhos em desejo que a madrugada transporta até ao luar que acaba de se deitar na almofada do sono.

As tulipas, alicerçam-se ao fim-de-tarde que voa em direcção ao abismo, porque em cada mão, elas, aprisionam o feitiço de uma cidade em ruínas. Das janelas, ouvem-se as silenciadas vozes dos espantalhos em passos apressados que de pé-ante-pé voam pelos campos de milho nas paisagens de Carvalhais.

Sabíamos que podíamos confiar nos poemas de AL Berto, mas quanto a confiarmos nas tulipas negras, já não estávamos tão certos, pior ainda, estas são pequenos esqueletos em papel, com desejos, que amam, que beijam, que gemem quando a noite entra pela algibeira do púbis envenenado na inocente luz escolar.

Perdidas, cansadas de habitar a prateleira superior dos sonhos, ouviam-se-lhes os outros poemas que em finas lâminas de maré corriam em direcção ao mar, depois, um velho pedaço em madeira, sem perceber a razão, levantava os braços apontados para o céu, e

Que assim seja, meu amor; todos percebíamos porque dormiam as acácias dos teus lábios.

E numa conversa de desespero, sempre antes do almoço, a pequenina madrugada sabia que também ela acabaria por morrer contra os rochedos da dor, como morrem os pássaros antes de bater as dozes horas nocturnas na torre da igreja; Deus queira que sim,

porque se não o for, salvamos-mos com os outros poemas de AL Berto, que muitos anos antes, líamos na companhia de uma esplanada envenenada pela nortada das abelhas em delírio quando alguma das pétalas envergava um fato e gravata e sapatos bicudos e engraxados pelo velho Armando e que no Café da Paz adormecia sem perceber que o sono e que diziam que adivinhava as horas antes de olhar o relógio e que cada vez que dormia e como um zumbi desenhava gargalhadas nas paredes e,

regressava o Medo; finalmente AL Berto se levantava das nossas coxas de incenso que quando vomitava labaredas de sono, ele, ela, nós,

o velho engraxador,

voava como um cargueiro esquecido em alto mar.

Hoje, percebo que as tulipas negras escondiam dentro do peito uma finíssima folha em papel, que dos sapatos bicudos, hoje, são apenas um pedaço de sola à venda no OLX. Pudera, pois sabíamos que as lágrimas de crocodilo que saltitavam de cadeira em cadeira eram apenas pedacinhos de lenço que quando sabujava algum tempo, deixava algumas letras e outros tantos riscos, que hoje ninguém consegue decifrar; apenas o Medo.

A boca abria-se-lhe e, num ronco desproporcional, lançava-se à conquista de almas gémeas e rezas de açafrão. Também diziam que ele inventara o sono numa noite de neblina, que depois, nunca mais foi o mesmo após provar as ditas sílabas negras das tulipas em flor.

Cansado, vossemecê?

Pudera.

Os sapatos envelheceram. E todas as gargantas hoje são apenas espojas que dizem absorver os poemas de AL Berto.

Diga-se; que delícia.

Comíamos-mos como se comem as borboletas antes do nascer do sol, e no entanto, a gabardine de tom escurecido devido ao surro, poisa hoje sobre uma sepultura em mármore e recheada com flores de trevo.

Dizem que dá sorte…

E que sorte terá um tipo que morreu antes da puberdade desenhar-lhe nas costas rebaixadas pela enxada do sono, que depois de partir, esfumou-se numa bandeira apátrida, a infância adormecida.

Provavelmente, nenhuma. E obviamente, demito-o, como se demitem os anjos antes do toque do clarim que se fazia ouvir numa Belém recheada de magalas em delírio por um estacionamento numa qualquer esplanada junto ao rio; estacionávamos as botas pesadas que transportávamos como se fossem ferraduras invisíveis…

E voávamos até ao pôr-do-sol.

 

 

 

Alijó, 04/07/2022

Francisco Luís Fontinha