Perdidas, cansadas de
habitar a prateleira superior dos sonhos, as tulipas negras antes de adormecer,
lêem um poema de AL Berto. Sob o sonâmbulo tecto da alvorada e, após o
silenciar de todas as sílabas, começam a ouvir, aos poucos, os pedacinhos em
desejo que a madrugada transporta até ao luar que acaba de se deitar na
almofada do sono.
As tulipas, alicerçam-se
ao fim-de-tarde que voa em direcção ao abismo, porque em cada mão, elas,
aprisionam o feitiço de uma cidade em ruínas. Das janelas, ouvem-se as
silenciadas vozes dos espantalhos em passos apressados que de pé-ante-pé voam
pelos campos de milho nas paisagens de Carvalhais.
Sabíamos que podíamos
confiar nos poemas de AL Berto, mas quanto a confiarmos nas tulipas negras, já
não estávamos tão certos, pior ainda, estas são pequenos esqueletos em papel,
com desejos, que amam, que beijam, que gemem quando a noite entra pela
algibeira do púbis envenenado na inocente luz escolar.
Perdidas, cansadas de
habitar a prateleira superior dos sonhos, ouviam-se-lhes os outros poemas que
em finas lâminas de maré corriam em direcção ao mar, depois, um velho pedaço em
madeira, sem perceber a razão, levantava os braços apontados para o céu, e
Que assim seja, meu amor;
todos percebíamos porque dormiam as acácias dos teus lábios.
E numa conversa de
desespero, sempre antes do almoço, a pequenina madrugada sabia que também ela
acabaria por morrer contra os rochedos da dor, como morrem os pássaros antes de
bater as dozes horas nocturnas na torre da igreja; Deus queira que sim,
porque se não o for, salvamos-mos
com os outros poemas de AL Berto, que muitos anos antes, líamos na companhia de
uma esplanada envenenada pela nortada das abelhas em delírio quando alguma das
pétalas envergava um fato e gravata e sapatos bicudos e engraxados pelo velho
Armando e que no Café da Paz adormecia sem perceber que o sono e que diziam que
adivinhava as horas antes de olhar o relógio e que cada vez que dormia e como
um zumbi desenhava gargalhadas nas paredes e,
regressava o Medo;
finalmente AL Berto se levantava das nossas coxas de incenso que quando
vomitava labaredas de sono, ele, ela, nós,
o velho engraxador,
voava como um cargueiro
esquecido em alto mar.
Hoje, percebo que as tulipas
negras escondiam dentro do peito uma finíssima folha em papel, que dos sapatos
bicudos, hoje, são apenas um pedaço de sola à venda no OLX. Pudera, pois
sabíamos que as lágrimas de crocodilo que saltitavam de cadeira em cadeira eram
apenas pedacinhos de lenço que quando sabujava algum tempo, deixava algumas
letras e outros tantos riscos, que hoje ninguém consegue decifrar; apenas o
Medo.
A boca abria-se-lhe e,
num ronco desproporcional, lançava-se à conquista de almas gémeas e rezas de
açafrão. Também diziam que ele inventara o sono numa noite de neblina, que
depois, nunca mais foi o mesmo após provar as ditas sílabas negras das tulipas
em flor.
Cansado, vossemecê?
Pudera.
Os sapatos envelheceram. E
todas as gargantas hoje são apenas espojas que dizem absorver os poemas de AL
Berto.
Diga-se; que delícia.
Comíamos-mos como se
comem as borboletas antes do nascer do sol, e no entanto, a gabardine de tom
escurecido devido ao surro, poisa hoje sobre uma sepultura em mármore e recheada
com flores de trevo.
Dizem que dá sorte…
E que sorte terá um tipo
que morreu antes da puberdade desenhar-lhe nas costas rebaixadas pela enxada do
sono, que depois de partir, esfumou-se numa bandeira apátrida, a infância
adormecida.
Provavelmente, nenhuma. E
obviamente, demito-o, como se demitem os anjos antes do toque do clarim que se
fazia ouvir numa Belém recheada de magalas em delírio por um estacionamento
numa qualquer esplanada junto ao rio; estacionávamos as botas pesadas que
transportávamos como se fossem ferraduras invisíveis…
E voávamos até ao
pôr-do-sol.
Alijó, 04/07/2022
Francisco Luís Fontinha
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