terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

A sanzala dos beijos

 

Via-te dançar

Na sanzala dos beijos,

Via-te brincar

Na sombra dos desejos,

Via-te abraçar

As palmeiras distantes da baía,

Via.

Via-te encostada à planície da solidão,

Depois da tarde se recolher,

Via-te a correr,

Quando apressadamente te encostavas ao corrimão

Da escada de acesso ao mar.

Via-te caminhar

Sob a ténue escuridão,

Via-te escrever e,

Pegares na minha mão.

Via-te perdida

Na cidade.

Via-te quando te escondias na idade

Depois da partida.

Via-te na esplanada da fotografia,

Via.

Via-te nos lábios a saudade

Do frio que ontem fazia,

Via.

Via-te em mim depois do acordar

Sabendo que dançavas na sanzala dos beijos;

Via-te sentar,

Via.

Via-te desejar

Todas as sílabas entre parêntesis e ensejos,

Via-te sabendo que ver-te me causa saudade,

Via-te na areia fina de uma página aberta,

Via-te quando olhavas sem vaidade

A rua deserta.

Via-te saltitando as pedras da calçada,

Via-te quando me batias à porta do silêncio matinal,

Com a paixão de um livro agasalhado,

Via-te embrulhada ao jornal,

O mesmo, de sempre, que eu tinha comprado.

Via-te sem saber que te via,

Na sanzala dos beijos.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 16/02/2021

domingo, 14 de fevereiro de 2021

A paixão dos beijos

 

Tínhamos nas mãos a paixão

Dos beijos.

A clorofila entre silêncios e insónias

Das palavras desertas,

Nos rochedos, oiço a voz da madrugada

Resiliente,

Cansada.

Tínhamos no olhar

O eterno clarão

Dos desejos,

Os poemas envenenados pela paixão

Começam a dormir,

Docemente,

Sobre a secretária da solidão.

Tínhamos nas mãos

O corpo molhado do mar,

Todas as marés e,

Todos os barcos em papel.

Tínhamos nas mãos o vento

Que trazia o Norte,

A fadiga

A má-sorte.

Tínhamos o cansaço dos abraços e,

Dos pincelados beijos sombreados

Uma fotografia tua,

Dançando nos meus lábios.

Tínhamos os dedos entrelaçados,

Como duas crianças a brincar,

Deitávamo-nos na areia envergonhada

Até que a noite nos vinha buscar.

Tínhamos tudo e,

Não sabíamos que o mar

É a nossa casa.

O amor escreve-se nos teus lábios,

Como uma cancela a boiar no rio…

Pego-te; amanhã saberás que as palavras

São poemas. Amanhã saberás que as palavras

São mãos absorvidas pela paixão.

E, mesmo assim, estas palavras, esta paixão,

São poemas que saem da minha mão.

Tínhamos o Sol,

As nuvens que governam a terra,

Tínhamos as palavras,

Nas palavras teus beijos.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 14/02/2021

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Insónia de viver

 

Escrevo o teu nome

Nas arcadas do pensamento,

Grito. Fico com fome

Das palavras alimento.

 

Os beijos desenhados

Na tua perfeita mão,

São abraços cansados

Que ardem no coração.

 

Tenho nas palavras abençoadas

A insónia de viver;

Do medo às caminhadas,

 

Quando o teu perfume

Me obriga a escrever.

Meu amor! Salva-me deste maldito lume,

 

Onde eu tenho de adormecer.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 12/02/2021

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Sábado

 

Sabíamos que era Sábado porque estava escrito na parede da sala. Os gonzos pareciam envenenados pelo silêncio e, uma sombra ténue projectava a insónia da pilha de livros junto à janela. O rio durante a noite tinha galgado o quintal, ao menos, apenas as árvores ficaram submersas, como se fossem corpos embalsamados dentro do tumulo.

Ia à janela, puxava de um cigarro e, desenhava palavras na vertente norte da solidão, poisava a minha mão na mão dela, acariciava-lhe o sorriso com um pequeníssimo olhar e, percebi que tenho mais jeito para escrever do que ser engenheiro; às vezes sinto o peso dos retractos nos ombros, uma sensação estranha que só percebo depois de acontecer. Entre momentos, pequenos instantes, pincelava-a com o meu olhar de transeunte desnorteado à procura de um milagre. Precisava mesmo de um milagre, segredava-lhe ele ao ouvido.

Era um gajo antipático com um feitio de merda, não gostava de multidões e, sempre que era Sábado, religiosamente como quem vai à missa das dezoito horas, dava-lhe na telha de pegar nos álbuns de fotografias e, entre silêncio, manuseava cada retracto como se fossem simples flor. ,

Hoje o rio estava cansado; tal como ele se sentia todos os Sábados ao acordar.

Prisioneiro das sombras do Além.

Escrevo cartas a Deus. Envio-as para o endereço mais curto que conheço; Avenida das Almas, nº 5 – Lisboa. Nunca obtive resposta. As palavras, quando escritas para ele, adornavam-se em cima de uma secretária bolorenta, carcomida pela ferrugem dos sonhos, que durante a noite, boiavam nos socalcos do medo.

Nunca me levas a passear.

E, é hoje que vamos passear. Levamos umas laranjas, alguns poemas e, fazemos um piquenique literário.

Como assim?

A ponte, meu amor.

As coisas boas, meu amor.

Este gajo é insuportável. Pronto, disse.

Sabíamos que era Sábado porque estava escrito na parede da sala. Os gonzos pareciam envenenados pelo silêncio e, uma sombra ténue projectava a insónia da pilha de livros junto à janela. O rio tinha acordado com uma tremenda dor de costas, ora bem, a idade também não ajuda e, o caminho é tumultuoso, de pedra entre pedra, contando pontes e pontões, já tinha caminhado por baixo cerca de trinta e cinco, não esquecendo o lixo que tem de transportar até à Foz.

Tudo é lindo quando acaba bem, segredava-lhe ela ao ouvido.

Sabes, dizia ele, até parece que hoje é Sábado.

Sábado, hoje?

Sim, fui ao cemitério e vi muita gente para um normal dia. Coloquei-lhes flores, velas e, conversei com eles. Têm sempre uma palavra carinhosa para comigo, não admira, sou filho.

A ponte, meu amor.

Nunca me levas a passear.

Sábado, meu amor. Sábado.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 10/02/2021