sábado, 4 de maio de 2013

Quando mergulhávamos no cacimbo

foto: A&M ART and Photos

Perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar
porquê
Perdia-te, e perco, nasci perdido, nasci dentro de um mês explícito, também ele, perdido, perdido, era verão,
em Janeiro, verão
Precisamente, em Janeiro, verão, perdia-te, comei a perder-te já dentro da maternidade, depois, depois no baptismo, e parece que caíram todos os santos quando me viram, e a Igreja da Nossa Senhora da Conceição, toda ela, por mim, em lágrimas,
e por vinte escudos,
Nada,
ninguém?
A terra, o pavimento térreo, pequenas janelas, pedacinhos de luz, entre o branco e o negro, circunferências de corpos, incluindo, o teu, o dela, o dele, de lábios em triângulos, de bocas em cubos, ou... ai as saudades dos hipercubos, das lareiras em flor, da Ajuda subindo a Calçada, descendo cordas de sombra, comendo sandes rápidas depois de voar a tarde sobre a ponte com acesso ao teu púbis de mel, a outra cidade em ti, e de ti, as ruas resumidas a pequenos grupos de palavras, simples palavras, pequenas canções, melodias que eu ouvia quando te sentavas sobre o meu ventre descarnado, sem folhas, suspenso num paralelo de vidro
ninguém e nada, entre nós como Dezembro depois da madrugada,
Escrevia Janeiro e debaixo do Sol tórrido entranhavam-se-me os finos arames que seguravam o tecto das estrelas onde dormia uma tenda, um enorme oleado, por baixo, uma longa estrutura metálica
era o circo
Homens e mulheres e crianças, e palhaços, e cães amestrados, e trapezistas, malabaristas e eu como ninguém, sentado num banco, em madeira apodrecida, contava eu, cada buraco preenchido pelo bicho da madeira, quadrados, círculos de corpos, o teu, o meu, o dela e o dele, os nossos transformavam-se em madeixas coloridas, em pequenas sandálias de couro, entre calções e saias de chita, crianças que inventavam espectáculos, o público emergia, crescia, e depois
fugiam de nós,
Como hoje, ontem, e depois havia a cama de pregos onde o conceituado artista plástico, escritor e poeta, e zé ninguém, eu, ou outro igual, se deitava, adormecia, enquanto
gosto dela, assim, semi-deitada, com as pernas poisadas sobre a terra doirada, gosto dela assim, encurvada, quase nua, quase silenciosa, quase emagrecida nos poucos grãos de areia que o mar deixa nos circunflexos corpos com asas, com barbatanas, como tu, como nós,
E
(era o circo, e perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar...)
enquanto tu semi-nua, dizias-me com pequenos traços no chão agreste da terra adormecida que os meus olhos mudavam de cor, conforme os dias, as horas, as semanas, em Janeiro, em pelo verão
Verdes,
em Agosto, quando mergulhávamos no cacimbo, pareciam âncoras de cacilheiros esquecidos no Tejo, e no entanto, no meu cadastro
(Cento e setenta e cinco centímetros, branco ou caucasiano, olhos verdes – Verdes? - e foi visto pela última vez na zona do Roque Santeiro, vestia calças de ganga e t-shirt branca com pequenas formas geométricas estampadas no rosto)
verdes, verdes, verdes... como as ervas,
E ele não regressou dos olivais de Outubro, à volta de mim, pedaços de luz em decomposição, e esperava pelo comboio das dezanove horas, abria a porta, espreitava
às voltas, em círculos, como serpentes enfeitadas com veneno imaginário, como tu, imaginavas-me na aula de geometria descritiva, ou em termodinâmica... ou em mecânica dos materiais, e pelos vistos, eu, sem tu o saberes, há muito tinha desaparecido...
O comboio partia, e ninguém tinha poisado o pé sobre a plataforma em cimento sonífero como as plantas do teu Outono, ao contrário do meu, e ninguém a poisar um saco, uma simples mala, nada, e depois de três apitos fortíssimos, ela lá ia, lá ia até encontrar um poiso com olhos verdes, como os teus, como os teus, esses braços... que nunca abracei.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Invisível mulher

foto: A&M ART and Photos

Quem sou depois de partires
disfarçado de nuvem
me deixando aqui sentada
mergulhada em planaltos e montanhas
sem ser desejada,

Quem sou quando levaste o meu tempo
e os meus desejos
quem sou se guardas em ti meu alimento
algumas palavras
e outras cerejas,

Quem sou amor meu
rei das estrelas e dos pinheiros de papel
quem sou eu
eu
a tua invisível mulher...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 3 de maio de 2013

Delírios incompletos de um homem morto pela saudade

foto: A&M ART and Photos

Havia sílabas com fome, na tua mão de escritor, havia lábios em desejo, nos teus lábios em desejo, na tua boca de poeta, fingidor, havia sonhos, havia traços, círculos, rectas, não rectas, pontos, negros, nas tuas costas de tela voadora, verdejante, cintilante, como a língua do impostor, que mente, e não percebe que o teu esqueleto pertence às gaivotas mergulhadas no cio granítico de um rio em desespero, morto, cansado de amar, cansado de correr
para o mar, eu, quase morto, eu o pintor louco dentro de quatro paredes e um tecto falso, falsas palavras, falsas promessas, amanhã, e ontem, ou
De caminhar entre escombros, entulho, sexos murchos que a cidade inventa todas as tardes, depois do lanche, depois de o dia terminar, partir para a montanha dos insectos com dentes de marfim, encolhia-me dentro das tuas coxas, acendia a vela da esperança, e esperava, esperava, esperava...
ou
Esperava,
até que o poeta ficou desempregado, e hoje tratam-no como lixo, escumalha, até que o escritor deixou de comer as palavras escritas, por ele, por outros, o médio
Tem de deixar de comer imediatamente palavras, percebeu senhor Francisco? Pois que sim, respondi-lhe eu, e pensei – que raio de coisa ou coisas, vou comer a partir de hoje - “merda?”, e esperava, quando sentia dentro do meu peito uma rua em crescimento, sentia-a rasgar-se entre os esponjosos pulmões de areia fina branca do Mussulo, sentia o romper da madrugada, o apito da fabrica para o inicio do trabalho, os operários de bulldozer na mão rompiam-se-me corpo adentro, e eu, sentia-os, todos, sem excepções, sem locuções ou metáforas, sem mentiras, sem noites mal dormidas ou com recurso a drageias coloridas,
ou
E esperava, e hoje, quem sou? Nada, ninguém, sou um pedacinho de terra húmida que trouxeram de Luanda depois de uma longa tarde de chuva, e o tempo, desejo-o, o tempo que esqueci, que me esqueceu, perdi, e perdeu-me
sinto-a a crescer, já tem pavimento, começam a construir os primeiro edifícios de vidro, com telhados de vidros, com varandas com acesso ao mar, com árvores, com corações de açúcar, com orgasmos vínicos, e o sémen escuro, deleitoso da lama... sobre mim, em mim, uma rua, pronta a circular, e por engano, vão chamar-lhe
Ou, ele esperava, claro que esperava,
rua, rua, rua,
“Havia sílabas com fome, na tua mão de escritor, havia lábios em desejo, nos teus lábios em desejo, na tua boca de poeta, fingidor, havia sonhos, havia traços, círculos, rectas, não rectas, pontos, negros, nas tuas costas de tela voadora, verdejante, cintilante, como a língua do impostor, que mente, e não percebe que”, rua, chamar-se-á “rua dos ínfimos delírios”, sobre mim, sobre ti, dentro de nós, os sons, as palavras, as vozes
voz?
a tua voz, em minhas sílabas palavras, melódicas e às vezes com recheio de neblina, cacimbo, com o cheiro do lindo musseque, vazio, doentio, chovia, e eu, eu brincava dentro da lama lenta e liberta, em perfeita liberdade, cantava, eu, subia às mangueiras, e não, nunca tive medo de cair, e se eu caísse... a terra dos jardins de capim apanhar-me-iam como se eu fosse uma leve pena de enxofre, mórbida, miliciana, amena, o morro das Barrocas, e eu aqui, si, dó, e ré... deitado a imaginar gajas vestidas com panos de chita e de bandoletes em porcelana na cabeça,
Ou, ele esperava, claro que esperava,
rua, rua, rua,
“Cuidado com os cães”
rua, rua, rua
Rua “dos ínfimos delírios”, número trezentos e trinta e três, segundo andar – direito, algures pelo País, Portugal,
rua, rua, rua...
CUIDADO COM OS CÃES RAIVOSOS.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Lábios de fim de tarde

foto: A&M ART and Photos

Um vulcão de segredos absorve-te do laminado silêncio
das mortas palavras
que o amor dita enquanto lá fora gotas de orvalho
nascem e morrem
nos olhos da noite,

Procuro-te ensanguentado entre o fumo invisível do teu cigarro
quando ainda passavas horas a fumar
a ler
e a escrever
a amar-me como se ama uma mulher,

A brincar com todas as flores dos jardins da cidade
e te sentavas no cais a contar os barcos que entravam e saiam da barra
com ou sem
tanto faz o destino
ao homem antes de morrer,

Pedias torradas
chá
mais tarde vinha ter contigo um café
onde depois de mergulhares na cafeína incandescente das estrelas de sonhar...
adormecias loucamente nos meus braços finos,

Agrestes
de pele escura e límpida como as algas da madrugada
sentia-te dentro dos meus seios
como se fosses uma nuvem
ou uma esponja com lábios de fim de tarde no cais de Alcântara.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Vivo, preciso de viver, como os peixes do teu aquário...

foto de: A&M ART and Photos

Tinhas-me inventado debaixo da sonolência que a transpiração das árvores deixava impregnada entre roupas e pequenos papeis, havia entre nós uma caneta de tinta permanente, negra, havia nas nossas algibeiras alguns pedaços de granito, olhos, lábios, pintados, nuvens, algumas em pano simples algodão com tranças castanhas, na cabeça, um laço de porcelana, e tínhamos, e víamos, e sentíamos, os doces milhafres da saudade,
vivi como um sonâmbulo canino dentro de um canil de verniz, percebia pela claridade que pertencia aos desperdícios de um candeeiro, algures, perto de mim, algures, feito de ferro enferrujado, um paquete mergulhado nos teus seios, homens, mulheres e crianças, todos à espera da ancoragem, devagar, tão lentamente... que percebia-se-lhe, das pequenas sombras, os distanciamentos milimétricos até atingir o cais, longínquo, atulhado de caixotes, carros desgovernados acabados de sair do porão, metros debaixo de água, de cima, tão pequeninos... as formigas e as abelhas suspensas nas madrugadas de nós, enquanto a janela aberta nos silenciava os corpos húmidos pelo suor da noite em cacimbo que os pequenos cubos de vidro absorvem,
Da saudade, porquê se todas as noites cerram-se as persianas do amor, como lajes de granito sobre a terra árida do monte em pequenos delírios, como árvores em busca da sombra, como sexos à procura da insónia no divã expressamente deitado sobre o soalho do quarto vazio, sombrio, porque da janela, nada, nem a abertura, nem a luz, nada, sobejou entre nós, naquela noite, em escuridão, quando deixamos-nos adormecer e os nossos corpos passaram a zumbis envenenados pela saliva da tua boca com sabor a mar...
havia algas, havia pequenos grãos de areia, havia...
Imagens, sorrisos travestidos de dor, mãos cinzentas na penumbra como se o laço de porcelana que trazias na cabeça, hoje eternamente doentio, sobrevivesse ao cataclismo dos morcegos que alimentam a noite com pequenas migalhas de sangue, alguns répteis e outras tantas telas prontíssimas como o destino da fogueira, flores, lápis de cor, pastel misturado com suor, o teu corpo permanece dilacerante como a dança dos arbustos na despedida com a ajuda dos sorrisos construídos nas horas de vazio, o contador mergulha no horário e pára quando entras em casa, e percebo que o teu olhar fulmina qualquer ser vivo,
também eu, sinto-me vivo, ou não? Também eu adoro sorrisos e beijos de amêndoa recheadas com chocolate, também sonho com noites, inventadas por ti, e acariciadas por mim, também eu
Vivo, preciso de viver, como os peixes do teu aquário, “se tens aquário”, se não tiveres um aquário, peço desculpa pela ofensa, e onde se lê “como os peixes do teu aquário” deve ler-se “como os peixes do teu silêncio ventre”, e amanhã regressará o candeeiro do amor, entre cartas e flores em desenhos, pequenos guardanapos com parvas palavras, mas é isto o amor?
claro que eu percebia pela tua silhueta que um dia deixarias de aparecer junto à lua, percebia-se que um dia deixarias de sorrir, talvez só o tenhas deixado para mim, mas eu percebia tudo isso, excepto...
Porque morrem as fotografias com imagens a preto-e-branco?
Excepto que há sorrisos infinitos, como duas rectas paralelas se encontram no infinito, tudo isso eu percebo, nada de corações entendo, apenas que uns são de xisto, outros de açúcar... e ainda há aqueles invisíveis, frios, húmidos como as margens de uma ribeira que desce a montanha, e não esquecendo os pedaços de granito, olhos, lábios, pintados, nuvens, algumas em pano simples algodão com tranças castanhas, na cabeça, um laço de porcelana, e tínhamos, e víamos, e sentíamos, os doces milhafres da saudade, e das ruas vinham até nós os morcegos das noites sem numeração, confundiam-se nos números de polícia, e quando queriam entrar no número vinte e três da rua do Deserto, não, nem tão pouco, próximos, se encontravam da rua do Deserto, quanto mais do número vinte e três, e assim, e assim
porque morrem as fotografias com imagens a preto-e-branco?
Consegui afugentar os morcegos das tuas mãos de linho, consegui que os mesmos morcegos, quando esfomeados, nunca tenham encontrado a tua boca em desespero pelos meus lábios, e hoje, espero, acredito,
o que é acreditar, pai?
Acreditar... não sei filho, há muito o deixei de fazer.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha