sábado, 7 de julho de 2012

O dono dos dias em fotocópias


Nunca sei ao certo se entro na dos homens ou pelo contrário, sem o saber, entro na das mulheres, confuso, os símbolos pendurados na porta de entrada, hesito
hesito entrar ou não entrar, hesito procurar o meu corpo no corredor de acesso ou tão simplesmente entrar a medo,
- arrependo-me, hesito, toco na porta ao de leve, hesito, recuo até novamente no Hall de entrada tentar perceber se é a dos homens ou é a das mulheres,
Paro escuto e olho, e nada, nem o homem de óculos escuros nem a mulher de mini-saia, nem o comboio de Cais do Sodré com paragem obrigatória em Belém, hesito, e nada, não entro, olho fixamente os símbolos meio acidentados pelas cores rosas da noite, e,
- e fico sem perceber se é a dos homens ou se é a das mulheres ou simplesmente é o cheiro do rio a mergulhar nas páginas amarelas de mais uma semana de trabalho, e nunca
Sei ao certo,
- e nunca sei se hoje é sábado ou se é antes de sábado ou se é depois de sábado, e nunca sei se junto ao rio os barcos são masculino ou se são feminino, ou, ou ambos...
Hesito, paro escuto e olho, e nada, nem o homem de óculos escuros nem a mulher de mini-saia, nem o comboio de Cais do Sodré com paragem obrigatória em Belém, nada de mim ao longe até ao Rossio, olho o céu pintado com estrelas de glicerina, olho e olho e olho, e hesito
- não entro,
E hesito no apeadeiro da vida sem os barcos fêmeas das tardes de verão, ela não pára, ela não hesita, ela simplesmente entra dentro do abismo, a porta de algodão ressuscita no vidro cinzento dos teus olhos, e não sei...
- não sei se é um homem ou se é uma mulher, não sei como chamar os barcos e distinguir-lhes os sexos azulados entre os passageiros e as companhias de viagem, companheiros de hesitação, homens e mulheres e barcos, e não entro,
E hesito, e espero pela chegada da luz dos silêncios e talvez com ela a voz de uma criança, hesito, tenho medo de entrar, apaixonadamente ele esconde-se nas flores carnívoras num compasso de espera entre o entrar e o sair, a porta abre-se lentamente e percebo que ali é a casa de banho das mulheres, longo, logo na porta ao lado ficará a casa de banho dos homens, e os barcos, e as flores carnívoras que se alimentam da minha paixão durante as noites de insónia,
- não entro, hesito,
Nunca sei ao certo se entro na dos homens ou pelo contrário, sem o saber, entro na das mulheres, confuso, os símbolos pendurados na porta de entrada, hesito, e todos os barcos na algazarra da Calçada da Ajuda, e ao longe a ponte tremendo de frio e enganando a fome com os símbolos inventados nas noites de tristeza, e triste é não ter o mar, e triste
- triste é ser o dono dos dias em fotocópias,
E triste,
as portas das casas de banho.

(texto de ficção não revisto)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Recordações de ontem

Reinvento a morte das palavras
nas lápides tardes sem o cheiro do amor
no auto dos afogados
as sílabas tontas
no estonteante assobio dos cigarros embriagados

(invisíveis
moribundo)

todas as ruas e todos os prédios em ruínas
“amo esta cidade
e amo loucamente este rio”
dentro da janela
onde vejo as flores partirem para o infinito

reinvento a morte das palavras
e o cálice de veneno
que deambula entre as vogais de “Proust”
e a Luanda ficção de “Lobo Antunes”
nas minhas mãos de gelo

(o miúdo à caça de gelados
na esplanada do Baleizão)

o circo
o circo sobre a mesa da esplanada
dentro da sombra da noite
com o tecto pintado de amendoins
e cucas loiras

Gogol triunfante entra com as suas queridas almas mortas
na gaguez das palavras

(invisíveis
moribundo)

passeiam-se nos olhos de Gogol
as velhíssimas gotas de vodka
e as simples folhas de orvalho

(reinvento a morte
dentro dos rios
onde vivem oceanos pintados de amanhecer)

“QUE SE FODA O AMOR
E
A LITURGIA DAS TUAS MÃOS”

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Podia ter sido uma rua da cidade de Luanda

Podia ser feliz
ou um barco
sem vela
podia ter sido uma rua da cidade de Luanda
entupida no lixo deambulante sobre a noite
podia ter sido o mar
o amor
o eterno veneno
a dor
podia
podia ter sido uma abelha misturada com a chuva
ou a paixão do silêncio

ai se eu fosse as amêndoas da tarde
em forma de poema
sobre a morte acidental

podia ser feliz
ou um livro de poesia
adormecido na prateleira da insónia
(podia ter emprego e dinheiro e assim já me conheciam
e assim
e assim já me cumprimentavam...)
podia ter sido o capim
e as mangueiras
e os triciclos de madeira

mas quis deus
que eu fosse um caixote
com paredes de vidro made in China
com coração de árvore
quis ele
quis deus

(podia ter emprego e dinheiro e assim já me conheciam
e assim
e assim já me cumprimentavam...)

que eu falasse como os pássaros
e gritasse como as nuvens
e desenhasse nas paredes da infância
a morte simplesmente bela
toda nua
à janela
quis ele
quis ele que eu fosse um poema sem palavras.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A saliva do amor

A alma encontrou
trabalho
finalmente

nas muralhas curvas do sexo
a saliva do amor
misturada na noite de flor queimada
em papelinhos de néon

a rua entupida de chulos
e beatas tontas e ratazanas voadoras e espantalhos barrigudos
comedores de palha seca e erva doirada
da lezíria
a erva levemente enfeitada
alimentando a beleza das mamas da tia Margarida
“que deus a tenha em descanso debaixo das tábuas da insónia”
nas curvas sinuosas do sexo

A alma encontrou
trabalho
finalmente

(não é sexta-feira e já estou teso)
nas muralhas curvas do sexo
ressequidos pelas valetas dos vapores de iodo
e do prato de enxofre que não se cansa de arder
enquanto a noite dentro da estrada sinuosa da vida
distrai-se abrindo e fechando janelas de brincar
finalmente
finalmente encontrei trabalho
numa montra da rua do Alecrim
um balcão de chocolate
com mesas de algodão doce
eu vi
eu via a noite travestida de lua cheia

saltar para o interior
de um buraco inoxidável
filho da cidade dos desejos
de danças e telegramas e palavras de mandioca
e oiço a voz da morte
à lareira da poesia com pequenos goles de incenso

deixei de ouvir-te
obedecer aos teus caprichos e imposições
deixei de de ser eu
e fui
e transfigurei-me num edifício em ruínas
livremente entre o ácido e o aço
e quatro paredes de vidro
sem fotografias
sem literatura
de água docemente uiva de dor
sem braços sem pernas
sem cabeça

o espelho da fechadura
recorda-se da morte quando beija as agulhas sibiladas do silêncio
os cigarros deixaram de passear na biblioteca
e vou alimentando de palavras embebidas em vodka os meus pulmões de cetim
adormecidos à beira-mar
um passeio entre duas páginas
e o poema malcriado fica de castigo
“cabeça para baixo e as rimas estão proibidas de irem à janela”

e curiosamente
hoje mergulhei nos rochedos
quando ouvi as doze badaladas insípidas
das marés envenenadas pelas facas de vidro

(A alma encontrou
trabalho
finalmente).

terça-feira, 3 de julho de 2012

FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO

Oiço a cidade a desaparecer para lá da noite
onde se perdem as almas sem nome
de todas as algibeiras construídas em cetim doirado
e mesmo assim
e mesmo assim há quem não tenha medo de atravessar a fronteira
não regressando nunca mais ao fim de tarde junto ao rio

as peles flácidas que transportam nos lábios
onde em letreiros gatafunhados se podem ler os desejos da noite
antes das almas sem nome atravessarem a fronteira e sentarem-se sobre as pedras
de nylon com que um esqueleto de óculos escuros constrói as redes para a apanha da solidão
e do chá e das torradas
antes
antes de ele se deitar dentro da sepultura de cordas e pregos de marfim
antes do cerimonial complexo à iniciação dos sem abrigo com cigarros de pluma em oiro

oiço o meu nome transformado em “filho da puta”
é a cidade travesti em direcção ao outro lado do rio para lá da noite
gajas chamam-me e eu recuso-me
curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO”
antes
antes de deitar-me dentro da sepultura de cordas de marfim
vi um homem louco com uma cabeça de areia embrulhada em correntes de aço
e do chá e das torradas
as redes com que apanhava debaixo da madrugada
pedacinhos de solidão com restos de esperma
e eis que para lá da noite
a cidade cresce nas peles flácidas dos olhos pedrados no pólen

(curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO”
curiosamente hoje e ontem “FEBRE COM PINTINHAS DE SARAMPO e nunca fui feliz”)

eu vi a noite comer os letreiros gatafunhados
e as frases começavam a misturarem-se com os restos esquecidos no passeio dos infelizes...
“vendo todo o recheio da minha biblioteca – motivo Fartei-me dos livros”
“vendo braços e pernas e dentes de madeira – Bom estado”
eu vi
a noite a transformar-se em palavras além da fronteira dos infelizes
com febre e papeira ou sarampo ou gajas a gritarem do outro lado do rio
para mim
eu o gajo mais infeliz do cardápio da infelicidade
eu vi
tu viste
a cidade a desaparecer para lá da noite...

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sexta-feira, 29 de junho de 2012

As planícies da biblioteca

À espera de quem nunca virá
acariciar as faces doiradas da lua
à espera
à espera das estrelas de engano
com mãos de pano
e que fingem orgasmos na via láctea
à espera de quem nunca virá
desligar o interruptor da solidão
e não tenha medo de deixar
sobre a mesa invisível
o pão
e o mar

o pão e o mar
sobre as finas planícies da biblioteca
o amor com o sabor amargo das palavras cansadas
e beijos

o pão
e o mar

o dia antes de morrer

à espera de quem nunca virá
acariciar as minhas mãos macias
que roubei à lua
numa noite de verão
uma noite muito especial
o pão
e o mar
do dia antes de morrer.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Na boca do inferno gulosa da noite

O restante do meu corpo
na boca do inferno gulosa da noite
há flores com esparguete
e caldo de cebola
há moelas e miúdos de frango
e meninos queixinhas
em busca de poesia
há o mestre completamente embriagado
na vodka que sobejou das noites da calçada da Ajuda
e há a janela na puta da janela
por onde durante a noite se escapava a Marilú
com um pedaço de pão na algibeira

começava o espectáculo
de luz e cor
e Marilú voava entre as gaivotas da noite
e os amantes esquecidos nos sótãos da rua das flores
mil e novecentos Lisboa
e Marilú dançava
com um pedaço de pão na algibeira
acreditando ser o amanhecer
acreditando ser Lisboa.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A solidão que dói

A solidão que dói
nas mãos do xisto com dor
a montanha em lágrimas
sem sorrisos
nem flor
o corpo sem amor
a ribeira sem água
a solidão que dói
dói até ficar noite
e todas as coisas belas
belas morrerem
no silêncio da calçada

a solidão que dói
ai tanto que dói
o fingimento também dói
dói ao rio sem veleiros

a solidão que dói
nas mãos do xisto com dor

do céu sem estrelas
nem flor
o corpo sem amor

a solidão que dói
dói e não tem dor.