sábado, 27 de maio de 2023

O pecado do corpo

 

Perguntávamos ao amor

Onde escondia o pecado do corpo

Perguntávamos a Deus

Onde escondia a equação do prazer

Do corpo

Em finíssimos uníssonos de gemido

Perguntávamos à paixão

Onde guardava os beijos da Primavera

 

Perguntávamos ao sono

Se o amor

Ainda escondia o pecado do corpo

O apetecido corpo

Que bem semeado

Por palavras…

Sorri em cada madrugada

 

Perguntávamos ao corpo

Se ele

O corpo

Ainda queria ser corpo…

Nas mãos do poeta louco

E tão pouco

Quase lá…

A noite inventa o corpo

Abraça-me

E dois pequenos corpos de luz…

Dão corpo

Ao pecado do corpo.

 

 

 

 

Luís Fontinha

27/05/2023


 Talvez nesta pincelada folha onde desenho o mar

Acordem os círculos de sorriso verde

Que todas as tardes

Junto ao mar…

Erguem-se em direcção ao abismo…

 

27/05/2023

Noite de mim

 

Podia ser noite

As luzes

Todas as luzes apagadas

Podia ser noite

Antes da noite

Podia ser noite

Dentro desta noite

Podia…

 

Podia ser dia

Pois podia

Se o dia não tivesse acordado tão cedo

E a noite

Despertado

 

Pois podia

Meu amor

Podia ser dia

Dentro da noite

Que vai nascer

 

Claro que podia

Ser noite

Sem luzes

Quando da noite

Recordamos o dia

Que teve noite

E terá

Um dia

Um outro dia

 

Podia ser noite

E agora

Nem que fosse uma noite emprestada

Nem que fosse uma noite comprada

A crédito

De cinquenta e seis lindas noites de sono

E isento de insónia

 

Claro

Claro que podia

Meu amor

Ser já noite

Roubada ao dia

Quando a noite

Podia

Podia ser dia

E podia ser noite

 

Claro

Meu amor

Claro que podia

Podia ser noite

Uma noite

Noite

Podia

Podia ser noite nos teus olhos

E dia

Que podia

Ser dia

Nos teus doces lábios

 

Claro

Claro que podia

Meu amor

Ser dia

Ou ser já noite

Podia

Podia

Ser noite

Noite disfarçada de dia.

 

 

 

 

Francisco

27/05/2023

Acordar

 

Acordava aos poucos o dia

Acordava

Docemente

Sem perceber que a madrugada tinha posto termino à vida

Da vida nocturna entre pedaços de lata

E fios finíssimos de geada

 

Acordava

E aos poucos

Na correria de sempre

Tomar banho

Pequeno-almoço

Correr

Correr

Logo

Logo

Começa a tarde

Despede-se a manhã do feiticeiro

E tudo recomeça

E tudo se repete

Todos os dias

A cada dia

 

Acordava aos poucos o dia

Sem saber ele

Que brevemente seria trocado pela noite

Feito prisioneiro na mão de alguém…

E posteriormente

Muito mais tarde

Condenado a cinco noites de sono

 

Acordava o dia

Todos os dias

O mesmo tédio

As mesmas fotografias

As flores são as de ontem

Os pássaros que ontem poisavam nas minhas árvores

Hoje

São os mesmos pássaros que ontem poisavam nas minhas árvores…

E ainda há quem pense ser superior

Quando cá cheguei

Tudo já cá estava

E quando eu partir

Tudo cá ficará

 

Acordava o dia

Aquele fatídico dia

E mais uma longa espera

Junto ao cais

Eu

O guardião das nuvens cinzentas

E dos tristes Sóis da noite anterior

Mais tarde

Talvez um outro ontem

Longínquo

Mais tarde recolhíamos todas as ossadas

Cada risco

Um osso

Dois ossos

No canto esquerdo do papel

Um silenciado sorriso

Quase

Quase

De tristeza

 

Acordava o dia

O dia envergonhado

Cansado do tédio

Cansado do mar

E dos barcos que se escondem no mar

Acordava o dia

Aquele fatídico dia…

Na ausência do corpo

Vendeu a alma ao merceeiro do quinto esquerdo…

E hoje é professor de Botânica.

 

 

 

Luís

27/05/2023

Primavera

 

Se o vento soubesse

Não te levava

Se o vento gostasse de mim

Não te deixava

Se o vento soubesse

Não dizia à chuva

Que a Primavera vai regressar

 

Para que eu quero a Primavera

Se as andorinhas morrem de silêncio

E as flores

À minha passagem

Desmaiam

Ficam negras

Sem voz

 

Se o vento soubesse

Não me dizia que a Primavera vai regressar

E com ela

As árvores ficam tão tristes

Com flor

Com fruto

Se o vento soubesse

Não me dizia que a Primavera vai regressar

 

Se o vento soubesse

Não me dava palavras para escrever…

Nem a Primavera

E as flores ficam lindas

E os pássaros apaixonados

Mas eu detesto as flores

E detesto os pássaros

 

Se o vento soubesse

Desenhava na tua lápide a Primavera

Com flores prateadas

Com sorrisos de doce madrugada

Se o vento soubesse

Abraçava-me

E me levava

E me dizia

Que o vento

Nada sabe

Sem saber…

 

Se o vento soubesse…

Não me trazia a Primavera

Nem as flores

Nem os pássaros

Porque já avisei o vento

Que não quero nada

Mas o vento é teimoso

E traz-me a Primavera

E a madrugada

E se o vento soubesse

E se o vento quisesse

Nada

Como eu…

 

 

 

Francisco

27/05/2023

sexta-feira, 26 de maio de 2023

Matéria

 

Às vezes, o tudo, o tudo é o nada…

E muitas vezes, o nada…

O nada é tudo.

 

Às vezes, às vezes escrevo,

E muitas das outras vezes,

Nada,

Nem escrevo,

Nem escrevo

Nem escrevo…

 

Muitas das outras vezes que escrevo,

Escrevo.

Escrevo e sento-me.

Olho o teu retracto,

Lá estarás tua a pensar…

Coitado dele, coitado…

 

Coitado do coitado,

Que muitas das vezes, sendo ele um coitadinho…

Tem o tudo do nada do coitado,

 

Às vezes, às vezes desenho o mar,

O meu mar.

Muitas das outras vezes,

Aquelas vezes em que o coitado do coitadinho…

Nada.

Senta-se, senta-se e observa toda a matéria em lágrimas,

 

Outras vezes,

Poucas das vezes,

Sento-me e olho o teu retracto,

Tantas vezes,

Das poucas vezes que parti…

E das vezes que fui e não voltei,

Tenho alguma das vezes,

O tudo,

Quando do nada…

O tudo é nada.

 

 

 

Luís

26/05/2023

Do sono

 

Invento o sono,

Invento a ausência do sono,

E semeio-os nesta pequena folha em papel,

Invento o sono,

Invento o silêncio do sono,

Quando a insónia pertence ao nada…

 

Dos círculos mortos,

Faço uma jangada,

Passeio-me pelas ruas…

Acreditando que sim,

Ou que não,

E não quero saber…

 

Invento o sono,

Desenho-o nos meus lábios,

Escrevo-lhes pequenos pedaços de solidão…

Depois,

Depois a cancela da noite,

Abre-se,

E todos os animais são livres,

 

Do sono,

Dentro do sono.

Invento o sono,

Talvez apenas algum do sono,

Escrevo-lhes,

Atiro-lhes com pedras…

E desenho-os na face da paixão.

 

 

 

Francisco

26/05/2023