quinta-feira, 6 de abril de 2023

Conversas

 Não sei, meu querido filho.

Não o sei, porque temos de habitar dentro de círculos, de quadrados, dentro de triângulos com janela para a tristeza, não, não o sei, meu filho

E se Deus trouxer o sono, pai?

Não. Não acredito, meu filho, não acredito que Deus nos traga alguma coisa, porque Deus, meu filho, porque o Deus da tua avó nunca, nunca meu filho, nunca nos trouxe nada… ia agora trazer… o sono!

Pai?

Sim, filho…!

E se o Deus da tua mãe, e se Deus da minha avó… for uma complexa equação matemática… e… e não passar disso, de uma equação matemática?

Sim, filho, é possível que esse Deus seja uma complexa equação matemática e quem a resolver tem todas as respostas.

Todas, pai?

Quase todas, quase todas… meu filho.

Quase todas…

 

 

 

Francisco

06/04/2023

Parêntesis recto

 Um pouco

Um pouco de quase nada

Quando o nada é pouco

E do pouco que se tem

O nada

É tudo.

 

 

Francisco

06/04/2023

A tristeza do meu jardim

 Porque morrem

Meu amor

Porque morrem todos os pássaros do meu jardim,

Meu amor,

Porque ficam doentes

Meu amor

Todas as flores do meu jardim,

E sim, meu amor…

Porque chove intensamente no meu jardim…

Quando da janela

Olho a rua

E está um sol tão lindo,

Meu amor;

Um sol tão lindo!

 

 

 

Francisco

06/04/2023

Deus, um círculo de luz com olhos verdes

 Cresci

Acreditando num Deus

Pedia-lhe coisas

Muitas coisas

Era um círculo de luz com olhos verdes

Às vezes

Este meu Deus misturava-se com as crianças que brincavam nos musseques

Construía danças enquanto o vento

Desenhava sorrisos junto ao capim

 

Este círculo de luz com olhos verdes

O meu Deus

O Deus todo-poderoso

Criador das palavras

Do desejo

Do sexo das palavras

Do beijo

Este pequeno-grande círculo de luz

Com verdes

Verdes olhos das marés de Inverno

 

Cresci

Rezava-lhe

Ajoelhava-me junto ao mar

Erguia-lhe as mãos…

E ficava… ali… pasmado como um pedacinho de medo

Sempre à espera

Esperando

Que um paquete me resgatasse daquele Inferno

 

E depois de eu morrer

O comandante do paquete

E o Deus todo-poderoso

Criador do silêncio

Da poesia

Da paixão

Um círculo de luz

Com olhos

Verdes

Meu amor…

Verdes olhos

 

À noite

Sentava-me na cama

Desenhava paquetes na fronha da almofada

Uma espécie de miséria abraçada à vergonha

Quando as estrelas em finos traços de tesão

Subiam às mangueiras do meu quintal

E eu sabia

Quase sempre…

Que o avô Domingos regressava da cidade

E na mão

Trazia o cordel

Com que puxava os machimbombos

Por uma Luanda…

Em pequenos vómitos

 

Meu Deus

Meu grande Deus

Círculo de luz com olhos verdes

De verdes olhos

Entre momentos de dor

E caixas de solidão

Um Deus hoje

Hoje arrogante

Um Deus que se está a cagar para mim

E para as minhas palavras

Um Deus…

Um círculo

De luz

E de verdes olhos

 

E não me digam que este Deus

Meu Deus…

E não me digam que este circulo de luz com olhos verdes…

É Deus…

Porque este círculo de luz com olhos verdes

Este meu Deus…

É apenas mais um impostor que poisou dentro de mim

Como todas as pedras

Como todos os rios

Como todos os mares;

Um círculo de luz com olhos verdes.

 

 

 

Francisco

06/04/2023

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Janelas quadriculadas

 

Semeio na minha mão

As janelas quadriculadas do vento,

Enquanto os cortinados do pensamento

Dançam no meu coração,

 

Abraço-me à tempestade,

Desenho nos lábios a insónia das noites sem dormir…

São poucas, são quase nada… e depois de partir

As janelas quadriculadas semeadas,

São a saudade,

Da saudade das tristes madrugadas,

 

Semeio na minha mão,

As janelas quadriculadas e os luares aprisionados,

Até que depois de acordar a manhã, os velhos cortinados…

Morrem dentro do meu coração.

 

 

Francisco

05/04/2023

terça-feira, 4 de abril de 2023

A despedida

 Despeço-me. Despeço-me de tudo, menos da vida. Despeço-me desta personagem parva, desta personagem imbecil, desta personagem que escreve cartas à manhã e ao mar, que escreve poemas ao luar e às noites de insónia,

Repentinamente, ele tombou da janela, como tombam os pássaros depois de acasalarem…

Estava sol, dentro de portas, uma fresta de silêncio redopiava sobre a secretária, quase nua, quase só…, como todas as secretárias que tive, poisada junto ao cachimbo de água, junto à pedra de haxixe, junto ao isqueiro, junto ao ultimo cigarro, junto ao revolver, junto ao ultimo poema, estava a fotografia de uma triste manhã junto ao mar.

E quando o mar incendeia os corpos, e quando do mar regressam os corpos em transe, eis que esta personagem percebe que o mar deixou de existir, que todos os favos de mel suicidaram-se numa noite de Primavera e da algibeira retirou a espada, cravou-a no peito, e voou…

Deus te guie… meu querido.

A maré tinha subido, e de todas as preias-mar que tinha observado, ele percebeu que nunca mais teria as estrelas em papel no tecto da alcofa; paciência, pois como diz o povo, é a vida.

Ultimamente, trocou a vida pelo (MEF) Método dos elementos Finitos, e entre a vida e o (MEF), escolheu beber o seu último copo de uísque, como se na manhã seguinte partisse para uma longínqua viagem, sem retorno, sem bagagem, sem esqueleto para lhe atrapalhar a vida.

Poisou os cotovelos sobre a secretária, escreveu palavras simples, porque em qualquer despedida a simplicidade é a melhor conselheira, pegou na pedra de haxixe, fez um pequeno (paivo) e quando terminou de o fumar, pegou no revolver e

Coitado, coitado do senhor Mário de Sá-Carneiro, coitado, tão novo, coitado…

Acontece a todos os poetas. Acontece a todas as personagens que se despedem dos poetas.

Estava sol, dentro de portas, uma fresta de silêncio redopiava sobre a secretária, quase nua, quase só…, dois corpos cambaleavam na embriaguez do desejo, sobre a pele dela pequenas gotículas de suor com sabor a paixão brincavam como duas crianças num qualquer jardim público; e coitado dele, coitado, tão novo…

Pegou-lhe na mão, levou-a aos lábios e beijou-a, tão intensamente que pequenos gemidos perfilavam-se junto à janela para serem os primeiros a observar o regresso daquele enorme petroleiro que desde a infância se tinha perdido e só agora tinha descoberto o caminho para casa.

A casa, a casa.

Coitado dele, coitado…

Tão novinho, vinte e seis anos…

Uma fina e espessa massa cinzenta soltou-se do crânio e todas as frestas de silêncio foram tapadas por esse amontoado de pedacinhos de carne, osso e sangue…

Deus te guie, meu querido, Deus te guie até ao Inferno,

Acreditava ele.

Depois de lhe beijar a mão, enquanto ela desenhava sorrisos no olhar dele

Amas-me?

Ele, atrapalhado, como quando está no processo criativo e lhe faltam as palavras para terminar um poema ou um texto, olhou-a, sorriu

Sim, amo-te.

Pegou no copo de uísque que estava sobre a secretária, levou-o até aos lábios, e em pequenos tragos, tal como já anteriormente se tinha despedido da personagem parva, imbecil, estúpida…, sim, essa, aquela que escrevia textos e poemas e cartas… e despediu-se também do copo e despediu-se também da espada que tinha cravado no peito.

Despeço-me antes que a tarde se despeça de mim, despeço-me desta personagem parva, imbecil, desta personagem que escreve cartas e textos e poemas…

Aos gatos, que são meigos.

Coitado dele, coitado do senhor Mário de Sá-Carneiro…

Coitado.

Tão novo.

Uma fina e espessa massa cinzenta soltou-se do crânio e todas as frestas de silêncio foram tapadas por esse amontoado de pedacinhos de carne, osso e sangue…

Deus te guie, meu querido, Deus te guie até ao Inferno, Deus te guie e te dê o merecido descanso, o sono eterno, porque amanhã

Amanhã… amanhã não poemas,

Amanhã… amanhã não cartas,

Sem remetente,

Com remetente,

Cartas que escrevo, a gatos, porque são meigos.

Coitados de todos os gatos, que lêem as minhas cartas, que lêem os meus poemas…

Coitados deles e dele,

Coitado,

Tão novinho, tão novinho…

 

 

 

 

Francisco

(04/04/2023

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Pedra cinzenta

 

Sento-me nesta pedra, fria e cinzenta, sento-me nesta pedra e espero que o vento me leve, e

Espero que o vento me mate.

Sento-me nesta pedra, tão fria e tão escura, e tão cinzenta, como os dias, como as noites, sento-me nesta pedra e espero,

Espero que o vento me leve, que o vento me acolha.

E de todas as pedras onde me sentei, e de todas as pedras onde dormi, esta pedra traz-me as lágrimas da madrugada, traz-me o silêncio da madrugada,

Tão fria, meu amor, tão fria a madrugada…

 

Francisco