Despeço-me. Despeço-me de
tudo, menos da vida. Despeço-me desta personagem parva, desta personagem
imbecil, desta personagem que escreve cartas à manhã e ao mar, que escreve
poemas ao luar e às noites de insónia,
Repentinamente, ele
tombou da janela, como tombam os pássaros depois de acasalarem…
Estava sol, dentro de
portas, uma fresta de silêncio redopiava sobre a secretária, quase nua, quase
só…, como todas as secretárias que tive, poisada junto ao cachimbo de água,
junto à pedra de haxixe, junto ao isqueiro, junto ao ultimo cigarro, junto ao
revolver, junto ao ultimo poema, estava a fotografia de uma triste manhã junto
ao mar.
E quando o mar incendeia
os corpos, e quando do mar regressam os corpos em transe, eis que esta
personagem percebe que o mar deixou de existir, que todos os favos de mel suicidaram-se
numa noite de Primavera e da algibeira retirou a espada, cravou-a no peito, e
voou…
Deus te guie… meu
querido.
A maré tinha subido, e de
todas as preias-mar que tinha observado, ele percebeu que nunca mais teria as
estrelas em papel no tecto da alcofa; paciência, pois como diz o povo, é a
vida.
Ultimamente, trocou a
vida pelo (MEF) Método dos elementos Finitos, e entre a vida e o (MEF),
escolheu beber o seu último copo de uísque, como se na manhã seguinte partisse
para uma longínqua viagem, sem retorno, sem bagagem, sem esqueleto para lhe
atrapalhar a vida.
Poisou os cotovelos sobre
a secretária, escreveu palavras simples, porque em qualquer despedida a
simplicidade é a melhor conselheira, pegou na pedra de haxixe, fez um pequeno (paivo)
e quando terminou de o fumar, pegou no revolver e
Coitado, coitado do
senhor Mário de Sá-Carneiro, coitado, tão novo, coitado…
Acontece a todos os
poetas. Acontece a todas as personagens que se despedem dos poetas.
Estava sol, dentro de
portas, uma fresta de silêncio redopiava sobre a secretária, quase nua, quase
só…, dois corpos cambaleavam na embriaguez do desejo, sobre a pele dela
pequenas gotículas de suor com sabor a paixão brincavam como duas crianças num
qualquer jardim público; e coitado dele, coitado, tão novo…
Pegou-lhe na mão, levou-a
aos lábios e beijou-a, tão intensamente que pequenos gemidos perfilavam-se
junto à janela para serem os primeiros a observar o regresso daquele enorme
petroleiro que desde a infância se tinha perdido e só agora tinha descoberto o
caminho para casa.
A casa, a casa.
Coitado dele, coitado…
Tão novinho, vinte e seis
anos…
Uma fina e espessa massa
cinzenta soltou-se do crânio e todas as frestas de silêncio foram tapadas por
esse amontoado de pedacinhos de carne, osso e sangue…
Deus te guie, meu
querido, Deus te guie até ao Inferno,
Acreditava ele.
Depois de lhe beijar a
mão, enquanto ela desenhava sorrisos no olhar dele
Amas-me?
Ele, atrapalhado, como quando
está no processo criativo e lhe faltam as palavras para terminar um poema ou um
texto, olhou-a, sorriu
Sim, amo-te.
Pegou no copo de uísque
que estava sobre a secretária, levou-o até aos lábios, e em pequenos tragos,
tal como já anteriormente se tinha despedido da personagem parva, imbecil,
estúpida…, sim, essa, aquela que escrevia textos e poemas e cartas… e
despediu-se também do copo e despediu-se também da espada que tinha cravado no
peito.
Despeço-me antes que a
tarde se despeça de mim, despeço-me desta personagem parva, imbecil, desta
personagem que escreve cartas e textos e poemas…
Aos gatos, que são
meigos.
Coitado dele, coitado do
senhor Mário de Sá-Carneiro…
Coitado.
Tão novo.
Uma fina e espessa massa
cinzenta soltou-se do crânio e todas as frestas de silêncio foram tapadas por esse
amontoado de pedacinhos de carne, osso e sangue…
Deus te guie, meu
querido, Deus te guie até ao Inferno, Deus te guie e te dê o merecido descanso,
o sono eterno, porque amanhã
Amanhã… amanhã não
poemas,
Amanhã… amanhã não
cartas,
Sem remetente,
Com remetente,
Cartas que escrevo, a
gatos, porque são meigos.
Coitados de todos os
gatos, que lêem as minhas cartas, que lêem os meus poemas…
Coitados deles e dele,
Coitado,
Tão novinho, tão novinho…
Francisco
(04/04/2023