terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Sílaba estrelar

 

Uma pequena sílaba estrelar

Solta-se dos lábios de uma flor

Não faz parte do poema

Não é o mar…

Nem é a dor.

Não é o cansaço

Dos ventos da madrugada

E também não é a Primavera

Que nunca me trouxe nada.

E dos lábios desta pobre flor

Solta-se uma lágrima

Uns dirão que é a chuva…

Outros que é a dor

E outros

Dirão que não é nada.

 

 

 

Alijó, 20/12/2022

Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Gaivotas em silêncio

 Não inventes o mar dos monstros marinhos

Não deites fora a espátula que dá forma à tela

E que faz com que os pássaros brinquem sozinhos

Não. Não deites fora o vento que faz trabalhar os moinhos

Enquanto na tua mão brinca um barco à vela.

 

Não penses que o mar é só teu

E que da ondulação

Um cachimbo de prata

Se alicerça na tua boca.

 

Não. Não penses que ganhastes o céu

Porque nem à terra pertences. Não deites fora as gaivotas do silêncio

Que povoam os cabelos amargurados da madrugada.

Não

Não deites fora a magreza dos pinheiros mansos

Quando da montanha vem a escuridão.

 

Quando a montanha é o teu coração.

Não. Não inventes o sono nas planícies

Enquanto o sono é apenas um voo

Uma constelação de silêncios

Que morre nos lábios das estrelas.

 

Não. Não digas que a manhã está nublada

Só porque a manhã está nublada,

 

Ou porque morreu uma gaivota,

 

Morrem todos os dias milhões de gaivotas

Morrem por dia

Milhões de crianças

Mulheres

E versos

E aterra sempre a girar.

 

Suicidam-se por dia

Não sei quantos homens e mulheres

E que ambos acreditam que o suicídio é a solução…

E o suicídio não é a solução

Para homens

Para mulheres

Quanto mais para uma gaivota.

 

Não inventes o mar

Nas mãos daquele que não gosta do mar.

 

E não culpes Deus porque o dia está nublado,

Porque Deus não entende de meteorologia

Nem de matemática

Nem de nada;

Deus é apenas um colar de pérolas

Que transportas ao peito

E quando uma gaivota está em silêncio…

Deus… está a cagar-se para a gaivota

E para ti

E para mim

E para a terra

E para todas as gaivotas em silêncio

E para os versos das gaivotas em silêncio.

 

Não inventes o mar

Nas mãos daquele que não gosta do mar

Não desejes que o mar

Entre pela tua janela

Quando tão pouco tu tens uma janela…

 

E que esta gaivota não seja estúpida.

 

 

 

 

 

Alijó, 19/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Oração

 

Rezavas por mim

Enquanto a noite se esquecia de ti,

E muitas vezes,

Muitas,

Levantaste-me do chão,

Quando eu tombava como uma árvore envenenada,

 

Procuravas-me pela noite

Quando não sabias se eu estava vivo

Ou morto,

Mas estando vivo

Estava ausente de ti,

Ausente de mim.

 

Rezavas por mim

E tinhas de ouvir as putas

Que em vez de atenuarem a tua dor…

Envenenavam-te…

Como se eu fosse um bandido;

Sim,

Talvez tenha sido um bandido,

Mas tu,

Tu nunca desististe de mim…

 

E rezaste tanto!

 

 

 

Alijó, 19/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 18 de dezembro de 2022

Meu grande amigo

 Come a sopa menino

Come a sopa

Se comeres a sopa em pequenino

Serás um dia poeta

Ou travesti

Ou puta

Ou outra qualquer coisa,

 

Serei tudo

Menos puta,

 

E com muito sacrifício comi a sopa toda,

 

Hoje detesto sopa

E detesto ter sido pequenino.

 

Sopa de hortaliça

Sopa e sopa e sopa

Com estrelinhas (estrelinha que te guie e caralhinho que te foda, como dizia um amigo meu falecido)

Come a sopa meu menino

Come

Come a sopa meu pequenino.

 

E tive amigos

Amigos que partiram

Amigos que comiam a sopa

Amigos que se perdiam no caldo

E eu nunca comi caldo. (felizmente)

 

Às vezes diziam-me que o caldo era uma merda

Mais noostan do que castanha…

E as couves e as batatas ficavam de ressaca na horta do Alfredo,

 

Cinco contos de nada

Metade de um grama em pequenos voos

Uma colher

Um isqueiro

Tanta merda para um caldo

Tanta merda meu Deus…

E às vezes tombavam como tombam as árvores,

 

Éramos muitos

Éramos tanto que parecíamos um exército de zumbis

Uns para cima

Outros para baixo

E outros tantos debaixo da terra,

 

Metade de um grama

Um grama e outra metade

Uma noite a olhar as estrelas

E na outra noite a olhar o cadáver de um amigo,

 

(a vida é uma merda, amigo Fontinha)

 

Que sim

Que era

Que a vida é uma puta vestida de negro

Traz um terço nas mãos

E vai à missa ao Domingo…

Ai meu amigo!

 

Que saudades eu tenho de ouvir-te a noite toda…

(eras um chato do caralho, mas eu gostava muito de ti, meu grande amigo)

 

E sabes meu amigo

Putas não são aquelas que fodem com todos os gajos…

Putas são aquelas que não sendo putas

Fodem o juízo e cabeça de um gajo

E sim

Essas vão à missa ao Domingo

Confessam-se na sexta-feira

E transportam no peito – Corpo de Cristo.

 

Que estejas em paz, meu amigo.

Em paz, meu grande amigo.

 

Amém.

 

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha

O Ano da Morte de Ricardo Reis


Projecção do filme "O Ano da Morte de Ricardo Reis"

27 de Dezembro - 21h30

A DORVIR do PCP e oTeatro de Vila Real, promovem a exibição deste filme em sessão integrada nas comemorações do centenário do nascimento de José Saramago. Haverá lugar a intervenções de João Botelho (realizador) e Frederico Neves (membro da DORVIR)

Cartas

 Já ninguém escreve cartas.

Há muito tempo que não recebo cartas

E as poucas que recebo

Ou são pagamentos

Ou notificações,

 

Também deixei de escrever cartas,

Antigamente escrevia-as

Hoje

Hoje não escrevo cartas.

 

E tenho saudades de escrever cartas,

E tenho saudades de receber cartas,

 

Cartas de amor,

Cartas de ódio,

Cartas invisíveis

E visíveis…

 

Cartas,

 

Cartas com destinatário,

Cartas com remetente,

Cartas anónimas,

 

Cartas.

 

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Rio sem nome

 Deixa que as tuas mãos morram

E que o corpo se extinga nas páginas de um livro,

 

Deixa que a noite invente nas estrelas

O sorriso daqueles que partiram.

- O regresso das árvores quando tudo se extinguiu,

Deixa que as tuas mãos

Invadam este caixão de prata

Com duzentos e seis ossos de sono.

 

Deixa que as tuas mãos morram

Na lareira da noite

Enquanto o meu caixão

Dorme nos lábios deste rio sem nome.

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha