sábado, 2 de janeiro de 2021

Sonham todos os pássaros do Ujo…

 

Quando a cidade se despede do pó e,

Uma nuvem de silêncio acorda no Vale do Tua,

A cidade morre; como morreram todas as pedras da cidade.

A terra adormece na insónia sombra da manhã,

O rio corre entre rochas e suspiros,

Como dois amantes,

Antes de nascer o Sol.

Ai senhores, tão nobre beleza!

Deitar-me enroscado ao cobertor de cinzas,

Da poeira morna do meu velho cigarro,

Erguer-me e, lentamente, aconchegar o meu estômago ao pobre silêncio granítico da alma.

A mesma cidade de há pouco,

Despenteada, de barba enrugada, caminha lentamente nas margens do Tua,

A alma veste o veneno mais belo da montanha,

Como uma criança,

Deitada na esperança.

Sonha o homem,

Sonha a mulher,

Sonham todos os pássaros do Ujo…

Até que um relógio de sombra,

Se senta na minha mão.

A invisível parede de vidro,

O fumo agreste do néon silêncio,

O barco em papel, o poema escrito no barco em papel…

Como todas as palavras das margens deste rio.

Oh Tua!

Mensagens cíclicas em nome de Deus,

Beleza do teu prazer,

Quando a cidade se despede do pó e, todos os Céus –

São motivos para escrever.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó – 02/01/2021

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A voz melódica da manhã

 

(Dois mil e quinze, foi uma merda; dois mil de dezanove, foi uma merda e, dois mil e vinte, contra tudo e todos, foi maravilhoso).

 

A alvorada voz da manhã,

Quando a terra se encosta ao Douro e, descansa.

Descansa a alma,

Descansa a mão inanimada da esperança,

Descansa o menino,

Descansa,

Descansa a criança.

Descansa o raio que o parta,

Quando subo à montanha e,

Uma fotografia, que descansa,

Descansa a vida malvada.

Ai, menino,

As suas mãos são de oiro,

São castanhas, são cinzentas manhãs em Paris,

Descansa,

Descansa corpo santo,

À voz de quem o diz.

São palavras,

São desenhos,

Descansa mão do artista…

Descansa, descansa mundo,

Na voz melódica da manhã,

Que descansa sem se ver,

Descansam as palavras,

Descansam todos os versos;

Descansa sua beleza,

Nos cadernos de escrever.

 

 

Francisco Luís Fontinha, 01/01/2021

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O beijo é uma fotografia

 

Uma casa cansada despede-se da saudade.

Todas as portas e,

Todas as janelas,

Dormem docemente na umbria da tarde.

O beijo louco das árvores,

Quando o louco amor,

Desce a calçada,

Quando a boca, da casa, beija a tarde em despedida.

E essa mesma casa,

Cansada,

Dorme docemente na tua mão.

Sabes, amor? Todas as flores do teu jardim e,

Todas as árvores do teu jardim,

Alimentam-me quando o sono desaparece na alvorada,

Uma pomba, voa entre pedaços de papel,

Até à claridade do dia,

Uma casa,

O amor da casa pelo pobre jardineiro,

Uma carta escrita entre parênteses e,

Fica sempre aquém um simples ponto final.

O rio foge das suas margens,

Os peixes agradecem todos os rochedos que encontram,

Todos os dias,

Ao meio-dia.

O café encerrado,

A esplanada entre pontas de cigarro e,

Lâmpadas de néon…

Tristes, como a aldeia dos chocolates.

Sabes, amor?

O beijo é uma fotografia,

Como a casa,

Cansada da saudade.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó 31/12/2020

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

De ti, sem ti.

 

Sem ti, das saudades de Luanda.

O menino que tropeça na sombra das mangueiras,

E, em cada fim de tarde,

O abraço imaginário do “chapelhudo”.

Caía a noite sobre ti,

E, dentro da sonolenta dor, os papagaios em papel colorido,

Que voavam em direcção ao infinito.

Guardo de ti, todas as fotografias,

Todas as palavras, escritas, não escritas,

Sobre um corpo moribundo.

O mar,

Lá longe, os braços do mar,

Corrupiando sobre a maré dilacerante do nada,

Tinha medo, da “lhá”,

Ouviam-se os gritos melancólicos dos mabecos,

Esfomeados pelo sono do desassossego,

E, no entanto, eram tão queridos, como o são todos os animais…

Sem ti, das saudades de uma Luanda assassinada por um dia de Verão,

Na algibeira, as pequeníssimas côdeas de saudade,

Descendo a calçada,

Sentava-me no chão, pedia à sombra das mangueiras, protecção para terminar mais uma aventura, descia do teu colo e, sabia que tinha regressado do ontem.

Hoje, recordo uma Luanda apodrecida numa pequena folha em papel,

Um vagabundo poema,

Que não deixa saudades.

Sem ti, de ti,

Este dia sem nome.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó – 24/12/2020

sábado, 19 de dezembro de 2020

O circo da loucura

 

Um louco será sempre um louco.

Cerram-se todas as janelas da poesia,

Morrem todos os pássaros da minha aldeia,

De tanto, o pouco,

Das flores donzelas que eu queria…

Antes do horário da ceia.

Caem sobre ti as loucas fotografias,

Escrevem-se as palavras sobre a ria,

Depois, vem a fantasia,

E, o amor e, a alegria.

Escrevo-te, meu amor,

Todas as tardes em beleza,

Sinto, sento-me, nas heteras mãos de Deus,

Sabes? O palhaço está doente,

A flor,

Tua doce boca, só, na clareira,

E, todas as sanzalas, e, todos os musseques,

Doentes

Como Deus nos apetece.

Esqueço,

Durmo nesta cama azada,

Entre um cobertor de pano

E, uma nova namorada.

Entre palavras parvas

Que assombram as minhas mãos;

Sabes, meu amor!

A vizinha está encharcada de veneno,

Trouxe a morte,

A vaidade…

E, escreveu seu nome,

Nas amplas matrizes de poder,

Olho-a,

Vejo-a,

E, loucamente te beijo,

E, loucamente,

Eu, este louco que te quer.

Um louco será sempre um louco,

No destino de viver.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó/19-12-2020

sábado, 12 de dezembro de 2020

Minha flor de Orfeu

 

Cáfila pétala teu nome

Abraço madrugada,

Dentro do silêncio, a fome,

A fome do beijo prometido,

Na boca sem nada.

(o homem perdido)

Percorre o corpo camuflado de desejo,

Ao sabor do vento arisco,

Pede às palavras, palavras de ensejo,

Num olhar nunca visto.

Sabe de antemão que tem no seu jardim,

Flores, meu amor e, palavras encantadas,

Papeis que voam dentro de mim,

Depois da tarde madrugar,

Sou o homem perdido,

Perdido no mar;

Sou o homem das palavras cansadas.

Minha flor de Orfeu,

Sorriso de menina,

Livros, cantigas e, beijos adormecidos,

Poema teu,

Na tua mão que alguém lê a sina,

E, sem o saber, alimenta os pássaros endoidecidos.

Escrevo no teu corpo, amar,

Cancão que o vento beija,

E, coloca nos teus lábios, a serpente envenenada.

Amor, temos tudo como um simples abraçar,

De quem a pedra aleija,

Dando à palavra, a seta laminada,

E, ao homem perdido, a minha flor de Orfeu;

Todas as palavras são desejo,

Todas, menos a saudade,

Porque em cada beijo,

Existe uma flor sem maldade,

E, em cada flor sem maldade,

Um beijo teu.

 

 

Francisco Luís Fontinha, Alijó, 12/12/2020

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Roda dentada

 

(para todas as rodas dentadas, com amor)

 

 

Mataram todas as rosas do meu jardim.

Incha o corpo da serpente embrulhado na saliva florida do meu jardim

E, pergunto-me,

Porque morreram as rosas do meu jardim.

Uma velha roda dentada

Na minha cama deitada

Desmiolada

Triste cansada.

Porquê as minhas rosas embalsamadas?

Coitadas.

Tristes.

Velhas.

Cansadas.

O torno

Que é mecânico

Beija docemente a velha roda dentada

Tem muitos dentes

Tem orgasmos

E, tem uma manivela

Que não serve para nada

A não ser

Para ser rodada

Prá frente

Prá cima

Alto

Cuidado;

Se fosse puta, eu gritava,

Assim,

Como é uma manivela que beija uma roda dentada.

Nada.

Está perdoada.

Coitadas das rosas do meu jardim

De tanto brincar

Dormem

Assim

Como o telegrama que recebi;

Despedido.

Desculpe, não percebi.

Deve ser um mal-entendido

Porque esta maldita roda dentada

Tem a mania que governa

Mas, meus senhores,

Governar não lhe serve de nada.

Governar

Só. Uma roda dentada.

Grito pelo aplainamento

Que brinca com a furadora

Morre

Fode

E, pede desculpa à meritíssima Doutora.

A sentença

A carta de despedida do enforcado

Foi abandonado

Deixado

Pela roda dentada.

Chamei a fresadora

Veio com ela a furadora

Mais a puta da rectificadora.

Hoje foi um putedo de máquinas

Livraram-se do arranque da apara

E lá continua ela

A desgraçada da roda dentada.

Parti-lhe os dentes

Todos.

E, tudo

Para nada;

Todo este putedo em minha casa

Não esquecendo a soldadura

A electroerosão

A puta que os pariu a todos.

Mas, por favor.

Não deixem a minha roda dentada

Deitada

No chão.

Foda-se; que palhaçada.

As fotografias

As rosas

E todas as rodas dentadas.

(e, Senhores. Isto não é um poema. Isto é uma orgia mecânica,

Que dorme na minha cama).

 

 

Francisco Luís Fontinha, 04/12/2020