Cessaram-se-lhe todos os ínfimos pingos de chuva
que mergulhavam nos olhos vendados do homem prisioneiro da janela dos
sonhos, havia silos de areia para ornamentar o regresso das navalhas
de prata que docemente alimentariam o peito almofadado, acordava o
vento que dançava abraçado aos ramos cintilantes das eternas manhãs
desprovidas do orvalho semeado durante a noite por um vagabundo com
um chapéu de palha seca, começava a chover pedacinhos de botões de
açúcar, e mesmo antes de cessarem-se-lhe todos os ínfimos pingos
de chuva que mergulhavam nos olhos vendados, ele cuspia pequenas
golfadas de vento que fazia correr as folhas mortas que poisavam
sobre a relva como um cobertor de lã sobre uma cama imaginária, que
todos sabíamos, só ele, apenas ele, conseguiria ver, tocar,
deitar-se nela, os dias passava-os sentado numa pedra granítica que
tinha sobejado da reconstrução do cais do silêncio, e tinha por
hábito cruzar os braços e fincar os lábios nos dentes de gesso há
muito fora de validade,
Eu temia o regresso às árvores de poeira com ramos
de algodão, sentia-lhes o cheiro intenso quando um interruptor de
luz desligava-me os aparelhos vários que dentro de mim habitavam, e
que eu já me tinha habituado, tão habituado, que muitas das vezes
nem de dava conta que vivia com electrodomésticos no interior do meu
estômago, ou um exaustor no interior dos meus pulmões calcinados
pelo betuminoso que eu pisava na rodovia que me levava até casa,
sentia-me completamente só, e nem os pássaros embalsamados, também
eles sós, dormiam tão tristemente como eu dormia, quando as noites
chegavam e eu fazia de conta que não estava em casa, batiam-me à
porta e eu sabia que do outro lado ninguém à minha espera, talvez
um velho morcego, em voos nocturnos, ou um pedra da calçada que se
tenha soltado quando da passagem do eléctrico,
Ele acreditava nos abraços do amor e nas relíquias
de espuma que o desejo deixava ficar sobre a mesa de pedra no centro
do quintal, em volta, uma ramada servia de parede diurna e que quando
da vindima colhiam uvas ranhosas completamente embriagadas pelas
abelhas do senhor António Joaquim José de Pedro, e um enormíssimo
ramo de flores com apetites de pólen esvoaçava como esvoaçavam as
gaivotas sobre os velhos cacilheiros que o antigo Tejo abrigava como
um pai quando pega no seu filho, e o beija, e o acaricia, e lhe diz
baixinho,
Deus te proteja, meu querido filho,
Desconheço se algum dia o meu pai fez o mesmo, e se
o fez, nem sequer me apercebi, porque perante Deus não existo, como
não existo
Ele tinha medo do sono,
Como não existo nos dias ímpares, como não existo
estatisticamente neste País de marinheiros sem embarcações
robustas, e as poucas que existem, são como o xisto dos socalcos do
Douro, parecem esponjas que absorvem toda a água, e os rios
tornam-se chatos, amargos, tristes, e de olhar carrancudo,
Ele tinha medo do sono, vestia-se de preto, e no
pouco cabelo que lhe cambaleava sobre a cabeça, prendia-lhe uma rosa
com um arame de oiro, descia e subia os poste da iluminação
pública, e não quero mentir, mas dizia-se que ele era filho da
noite e da Lua crescia, fruto de uma relação proibida e
extraconjugal, como muitas, e tantas, algumas felizes, outras
Como não existo quando os sons da Primavera dançam
no cimo da copa das árvores, como não existo quando me olhas como
um louco, um morto-vivo, moribundo, murmúrio magma dos seios de
marfim que um artesão esculpiu nas paredes de mármore do meu
empobrecido túmulo, como nunca existi
Outras, um fumo azul-celeste rompia a sujidade
húmida do cachimbo usado pelo velho António Joaquim José de Pedro,
sabíamos que no tabaco bolorento misturava-lhe as drageias para a
próstata, insónia e reumático, às vezes, quando não se esquecia,
introduzia também pequenos grãos de pólen para as constipações,
dizia-nos ele quando lhe perguntávamos o que faziam grãos de pólen
misturados no tabaco de cachimbo,
Hoje ninguém se interessa pelo magnetismo que
tinham e têm os espectáculos de circo, a magia da inocência, as
pálpebras de lona suspensas no tecto embaciado das matinés
embrulhadas no ténue cacimbo da saudade, ouviam-se os lilases
sorrisos da menina trapezista sobre um arame invisível, eu conseguia
ouvir-lhe a respiração ofegante, trémula às vezes, em gemidos de
Pôr-do-Sol, outras,
Ele tinha medo do sono,
Duas galinhas tinham acabado de morrer por
afogamento, e o zinco que as cobria, em círculos no quintal do
vizinho, eu gostava dele porque às vezes via-o em pequenos voos em
volta das mangueiras, e com um saco de rede, recolhia todas as
sombras que encontrava, dizia-nos que serviam para nas horas vagas
fazer pequenas esculturas que posteriormente as vendia na Baía de
chocolate banhada pelo mar de amêndoa, e também sejamos francos, o
que são duas galinhas e três ou quatro chapas de zinco?, trocos,
miúdos (de frango?), bonecos de borracha pendurados num triciclo
enferrujado, como eu, que deixei de existir, que deixei
Medo do sono,
Colorir-me com o medo do senhor António Joaquim
José de Pedro e quando acordar em mim a insónia, fazer de conta que
não existo, como sei que nunca existi
Para ti, para mim, para eles, para elas,
Em vidro opacos completamente mergulhados nas
roldanas de um relógio de pulso, e sabia-o
Que nunca existiram pingos de chuva,
E sabia-o
Que nunca existiram olhos vendados,
E sabia-o
Que nunca existiu um homem prisioneiro e a janela
dos sonhos era uma grade de aço com boca de quadriculas que faziam
sombra nos silos de areia.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha