quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Os lençóis encarnados do Natal

Não sabia que te incomodavam as teias de aranha que embrulham alguns dos livros que sepultei na cave, velhos, fora de tempo, moribundos como as pessoas da minha idade, não sabia, desculpa, que te incomodavam

dias depois de mim, descias as escadas e sentavas-te sobre as páginas cansadas e poeirentas da velhíssima encadernação, algumas palavras tuas, dias depois, te incomodavam os inchaços invisíveis que das tuas torrentes mãos alicerçavam as ruas circunflexas que a cidade engole, um copo de cerveja, vodka, qualquer coisa por favor senão morro, morro, como eles, e enterram-me na cave, como eles,

te incomodavam as minhas frágeis carícias, te incomodavam as aventuras do poderosíssimo Pai Natal, de chaminé em chaminé, e finta algumas das clarabóias para não incomodar

que te incomodavam,

os amantes sobre os lençóis encarnados do Natal, que eu, que tu

detesto,

que eu

detesto,

desculpa, não sabia, que te incomodavam as minhas mãos de sabão, desculpa, não sabia, que te incomodavam as minhas orelhas pontiagudas como aqueles sapatos de joguei janela fora, também eles, pontiagudos, e tu

não me ouves, e sentavas-te sobre a velhíssima encadernação de couro, velhíssima como os meus cabelos, cinco por cento são meus, e noventa e cinco por cento

detesto,

que eu,

detesto,

noventa e cinco por cento do fisco, dos credores, e da puta que os pariu, a elas e a eles

as baratas e as teias de aranha, não te importavas, não querias saber, e agora, agora

feliz Natal,

(o caralho)

detesto,

que eu

detesto,

e pergunto-me, e pergunto-te, tu deitavas-te em mim e enrolavas-te nos meus braços

que eu

e os restantes trezentos e sessenta e cinco dias?

detesto,

nos meus braços, não te importavas, não sabias que os sonhos são simples sombras de rochedo que o mar vomita nas noites de insónia, não dormimos, não comemos, apenas jazemos na cave, embrulhados em teias de aranha, sentavas-te sobre mim

feliz Natal,

que eu

detesto,

que tu

detesto,

dias depois de mim, descias as escadas, pegavas numa lanterna, enrolavas-te em mim e silenciosamente folheavas as minhas finíssimas páginas de puro aço, frio, distante, a cave onde eu

detesto,

adormecia com os teus beijos.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

blogue Cachimbo de Água em destaque no Sapo Angola


(Mas ele não é Ateu?)

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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Mas ele não é Ateu?

(21 de Dezembro de 2012, 02:35 horas)

Não sobrou nada para nós, dizias que ele era um oceano de luz entre quatro paredes de vidro, mas ela não queria acreditar, o fim do mundo?
existe o mundo? Perguntava a minha avó quando subia connosco ao cimo da montanha, e olhando em redor,

tão grande o mundo,

e apenas uns miseres quilómetros quadrados, depois, o mar dentro das jangadas de xisto que deambulavam em circunferências concêntricas até desaparecerem no limite do pôr-do-sol quando o olhar da mulher que vivia no rés-do-chão direito, da rua da alegria, tendia para zero, confundia-se às vezes

mais ou menos infinito,

o fim do mundo espelhado no tecto da igreja abandonada pelas pessoas da aldeia, mentias-me quando chegavas a casa de dizias-me que vinhas da missa, eu, fingia acreditar e pensava

mas ele não é Ateu?

Não, sobrou nada para nós, ouvias-me fingindo que acreditavas em mim, perguntava-te

não acreditas em mim? Sorridentemente dizias-me Claro que sim meu querido amor, claro que sim, tão grande o mundo, as palavras, as azeitonas sobre a mesa da cozinha, completamente sós, abandonadas pelas mãos da minha avó, que subia connosco ao cimo da montanha, e olhando em redor

tão grande o mundo,

tão azul, tão, como diria o meu grande amigo, tão clandestino como as asas dos plátanos, ninguém, entre noites e muros de vedação, ninguém acreditava

acaba agora o mundo...

mas ele não é Ateu?

Claro que é, mas para efeitos normativos, para enganar a mulher, enquanto ela o espera

será que o espera?

Ele faz o sacrifício de todas as noites ir à missa deita-se de barriga para o céu e começa a contar as estrelas, e quando as fotografias da amante começam a colarem-se-lhe no corpo esbranquiçado de incenso, parte, para longe, e chega a casa

desculpa amor, o sacerdote chegou atrasado, e ela não queria acreditar, o fim do mundo?

acaba agora o mundo...

mas ele não é Ateu?

Não é, foi, agora é de todas as crenças, talvez alguns dos outros deuses lhe valham, e o fim do mundo

não acabou, vês meu amor querido,

e sinceramente eu não via nada, pesava-me a cabeça, cambaleava quando entrava em casa, ela esperava-me, ele esperava-me,

só agora, eles para mim,

e logo agora

e sinceramente eu não via nada, pesava-me a cabeça, cambaleava quando entrava em casa, ela esperava-me, ele esperava-me, e logo agora que fiquei sem cigarros, e logo agora

só agora, eles para mim,

a mulher, a amante da mulher, o sacerdote, o sacristão, e eu

Não sobrou nada para nós.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Literatura verdejante


Há dentro de ti
um fluido hidráulico que corre como um rio
alimenta os teus braços
as tuas pernas
os teus ossos engomados
pela complexa geada da noite

tens luzes na tua boca silenciosa
que esconde madrugadas
flores amassadas
incêndios de esperma
janelas encerradas
que não te deixam ver o mar

há dentro de ti
um jardim de terra queimada
capim
mangueiras cobertas de sonhos
e de papagaios de papel
há em ti a literatura verdejante que as mãos do diabo despenharam contra os rochedos da lua

há um homem cego
dentro de ti que habita a paixão
capim
zinco que rodeia a cidade
há uma canção
à espera da tua voz poética e que a chuva miudinha mastiga

e sofre
e engole
manhãs de ti dentro do perfume da maré
caiem docemente as partículas do sono
sem fé
que os teus lábios consomem na lareira do ciúme inventado por um louco

e pouco
muito pouco posso escrever dentro de ti
a não ser
olhar-te como um rio
que corre
e caminha o teu fluido hidráulico que traz a insónia em pedacinhos de cereja...

(poema não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Gaivotas de papel ou as vertigens sem destino

Anoitecia, e eu sem saber onde te escondias, dormias às vezes debaixo dos beirais, outras, embrulhado em jornais, às vezes procurava-te em cada cama melancólica que a cidade coloca à disposição dos homens, das mulheres, que como tu, vivem, sofrem, amam, desejam ser amados, e dormem num pedaço de chão, às vezes, tantas vezes, da claridade do sono, a fome, o tilintar de esqueletos nas ruas perfumadas pelos bonecos de palha, espantalhos, que guardam as searas dos malvados e infernais pássaros pretos, anoitecia

e sabias que me escondia em pouquíssimos milímetros quadrados de espuma que o mar trazia do outro lado da montanha, o céu era azul, as árvores verdejantes com olhos castanhos, e os cabelos, nos cabelos uma flor encarnada e eram loiros como quando acorda o dia, e depois, redopiam silenciosamente as horas, os minutos, redopiam silenciosamente os segundos, até que um qualquer homem sem destino, acorda, cruza as mãos, e anoitecia, e eu

sem saber escrever,

e eu

sem saber ler,

e eu

sem saber que existias e dormias como os pardais,

e sabias desenhar nas ardósias da infância a liberdade, e voavas, e eu

sem saber fazer contas,

de somar, subtrair, dividir, ou quase sempre de multiplicar, pegava em dois pedacinhos de sofrimento, ela, a professora, multiplicava-os por três medidas de dor, e meu deus, sofrias

até que as malditas lágrimas de sangue desciam do primeiro andar vagabundo e desaguavam junto à ponte que me levava até ao cemitério, a morte é um complicado mistério, efémero destino suspenso pela associação clandestina dos fósforos depois de darem vida a um cachimbo de madeira, o fumo que escorre das tuas veias, e sofrimento, destino, sofrias

em pequeno menino,

sem saber escrever,

e eu

sem saber ler,

e eu

mergulhado nas vertigens que as gaivotas de papel provocam nas manhãs de chocolate, procurava-te

sem saber escrever,


e quase nunca te encontrava, e quase nunca sabia de ti, dias, noites perdidas, em lágrimas de sangue, cimento, a argamassa que crescia no meu rosto de vento encharcado de poeira, sofrimento, e lá fora corrias, dormias em sítios desconcertantes, e eu

sem saber desenhar,

e eu

sem perceber que as tuas mãos tremiam, e dos teus lábios ouviam-se os pingos finíssimos da chuva, as noites, as noite intermináveis, de sono, construídas em folhas de aço e arrebites de insónia, e mesmo assim, eu

esperava por ti.

(texto de ficção não revisto)

@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Cachimbo de Água em destaque no sapo Angola



(Quatro simples palavras)

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segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Em sílabas teus seios de marfim


O quarto de mármore fugitivo que a noite deixa cair
sobre o lençol de linho
os sonhos
entre ossos de pedacinhos de ninho
que o coitadinho
passarinho
aliviou quando acordou a madrugada
e desceu sobre ela a morte,

a sala sem lareira
na fúria agonizante que as luzes de néon
desenham nas entranhas paredes da película fina tua pele
e não sei
e não sei se as minhas palavras amargas
são
então hoje dormiste sobre a geada fina da montanha
são as cansadas mágoas sofridas pelas húmidas tuas mãos de tecido,

tu
tu desesperadamente
com o medo da escuridão que os olhos me obrigam a caminhar
sobre ti
a areia amarela da calçada
à janela
tu desesperada mente a paixão Clementina
ciumenta os alicerces do clitóris poemas inventados,

nos poemas murmurados
que ao púbis paixão em versos clandestinos
tu
escreves-me quarta-feira
e a sorte desespera-se em mim
assim
o jardim inválido quando as asas poeirentas das abelhas
na rede cintilante dos pequenos orgasmos das flores em flor,

tudo no chão
o soalho
às cadeiras suspensas nas estantes da cave tua boca
as palavras
há palavras na garganta do pavimento térreo
livros alguns poucos poucas nenhumas em sílabas teus seios de marfim
tudo no chão
as palavras em trinta e um de Dezembro.

(poema não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó