Anoitecia, e eu sem saber
onde te escondias, dormias às vezes debaixo dos beirais, outras,
embrulhado em jornais, às vezes procurava-te em cada cama
melancólica que a cidade coloca à disposição dos homens, das
mulheres, que como tu, vivem, sofrem, amam, desejam ser amados, e
dormem num pedaço de chão, às vezes, tantas vezes, da claridade do
sono, a fome, o tilintar de esqueletos nas ruas perfumadas pelos
bonecos de palha, espantalhos, que guardam as searas dos malvados e
infernais pássaros pretos, anoitecia
e sabias que me escondia
em pouquíssimos milímetros quadrados de espuma que o mar trazia do
outro lado da montanha, o céu era azul, as árvores verdejantes com
olhos castanhos, e os cabelos, nos cabelos uma flor encarnada e eram
loiros como quando acorda o dia, e depois, redopiam silenciosamente
as horas, os minutos, redopiam silenciosamente os segundos, até que
um qualquer homem sem destino, acorda, cruza as mãos, e anoitecia, e
eu
sem saber escrever,
e eu
sem saber ler,
e eu
sem saber que existias e
dormias como os pardais,
e sabias desenhar nas
ardósias da infância a liberdade, e voavas, e eu
sem saber fazer contas,
de somar, subtrair,
dividir, ou quase sempre de multiplicar, pegava em dois pedacinhos de
sofrimento, ela, a professora, multiplicava-os por três medidas de
dor, e meu deus, sofrias
até que as malditas
lágrimas de sangue desciam do primeiro andar vagabundo e desaguavam
junto à ponte que me levava até ao cemitério, a morte é um
complicado mistério, efémero destino suspenso pela associação
clandestina dos fósforos depois de darem vida a um cachimbo de
madeira, o fumo que escorre das tuas veias, e sofrimento, destino,
sofrias
em pequeno menino,
sem saber escrever,
e eu
sem saber ler,
e eu
mergulhado nas vertigens
que as gaivotas de papel provocam nas manhãs de chocolate,
procurava-te
sem saber escrever,
e quase nunca te
encontrava, e quase nunca sabia de ti, dias, noites perdidas, em
lágrimas de sangue, cimento, a argamassa que crescia no meu rosto de
vento encharcado de poeira, sofrimento, e lá fora corrias, dormias
em sítios desconcertantes, e eu
sem saber desenhar,
e eu
sem perceber que as tuas
mãos tremiam, e dos teus lábios ouviam-se os pingos finíssimos da
chuva, as noites, as noite intermináveis, de sono, construídas em
folhas de aço e arrebites de insónia, e mesmo assim, eu
esperava por ti.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó
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