Tudo branquinho, e frio,
o café moliceiro que os nervos de arame rompem o esqueleto ensonado,
a cama, chama, a cama brincando no soalho zarolho, áridos, cansados
cobertores, as cartas de amor, nas árvores aos jardins de fósforo
depois do suicídio das flores coloridas, o equilíbrio, e frio
- e frio, o café
moliceiro que os nervos de arame rompem o esqueleto ensonado,
a tenda de circo, o
sufoco, a trapezista, dias e dias de sufoco quarta-feira à noitinha
depois de grandiosas amarguras, e frio, está bem meu amor, mais
cansado, que o comboio das dezoito e trinta, chegavas a Belém como
um figurante e escondias-te entre os carros invisíveis que flutuavam
sobre os cachimbos de névoa, traineiras, olhos de vidro, cabeleiras
postiças e pulseiras de pechisbeque, teus, corações de cereja, e
sempre acreditei que no teu peito habitava uma gaivota embalsamada,
- hoje cansei-me, hoje
acordavas de manhã, mal
percebias que ele existia na tua cama de sofrimento, vivias nas
ressacas e nos caranguejos entre pernas partidas e alicates de
silêncio
- hoje cansei-me, hoje
nem um beijo na face oculta do meu cadáver,
e dizias-me que o
silêncio construía ruas desertas com casas desertas com homens
desertos, e camelos muitos, a areia das palavras distribuídas pelas
algibeiras de sucesso, doutores, engenheiros, sacerdotes, e mendigos,
bêbados que a noite, e escondias-te, que a noite e escondias-te
debaixo dos meus braços, gritavas alto, estremecias todo o prédio,
não dormias, tinhas suores e diarreia, e vómitos, e todos os vidros
das tuas janelas se partiam com a alvorada,
- hoje cansei-me, hoje a
madrugada,
acordavas de manhã, mal
percebias que ele existia
- hoje cansei-me,
que ele existia e vivia,
que ele amava e sentia, a doçura melancólica das cerejas com
chocolate, colocavas uma venda nos olhos, calçavas as luvas de
cabedal, e em pequenas caricias percorrias cada milímetro quadrado
do meu corpo bibliotecário, prateleira por prateleira, livro por
livro
- sinto-te dentro de mim
com todas as letras do alfabeto, sinto-te com todas as palavras,
sinto-te em mim de mim como quando caiem lá fora as finas partículas
de desejo, sinto-te, sinto-te vestida de noite, sinto-te em círculos
negros com algas e vapores de iodo, e hoje cansei-me, hoje a
madrugada, que ela existia,
por livro, pegavas num
qualquer aleatoriamente, abrias-lo, folheavas-lo, e não percebias
que o livro era eu e que
- hoje a madrugada,
era eu que pintava o céu
de azul e desenhava as ondas no mar, ouvia-te longitudinalmente
- não acredito,
e podes acreditar, na
raiz quadrada, nas equações do segundo grau, e podes acreditar que
tudo branquinho, e frio, o café moliceiro que os nervos de arame
rompem o esqueleto ensonado, a cama, chama, a cama brincando no
soalho zarolho, áridos, cansados cobertores, as cartas de amor,
beijos, hoje a madrugada disfarçada de geometria, ao pequeno-almoço
um prato de letria, e ouvia-se o mar sobre a mesa estacionada na
cozinha,
todo o prédio
estremecia, um vento cinzento apagava a lareira com finas pétalas de
vidro, o cheiro intenso a morte, a barcos, a rosas antes de tu as
pintares e as depositares no interior de um desgraçado livro,
coitado dele, tenho pena da solidão dos livros, sinto-te enfeitada
com folhas de roseira e picos de medo, na cozinha, derretiam as
sílabas dos gemidos lamentos dos teus difíceis diálogos em finais
de tarde, e a tuas queridas irmãs
- hoje cansamos-nos, hoje
a madrugada, e ternamente aborrecidas com as mãos dos delatores
sexos que o inverno congela nas prateleiras
e as tuas queridas irmãs,
- nas prateleiras que
todos os prédios em ressaca têm sobre os ombros ossudos e dos
vestígios do alumínio em rolos de dez metros, filamentos de frio, o
café moliceiro, e nem os teus lábios na despedida das quatro
janelas com vidros do loiro cabelo quando ao acordares abraçavas um
qualquer transeunte em direcção à outra margem,
e as tuas queridas irmãs,
gritavas alto, estremecias todo o prédio, não dormias, tinhas
suores e diarreia, e vómitos, e todos os vidros das tuas janelas se
partiam com a alvorada, e todos os vidros das tuas janelas morreram.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó