“para a menina dos
sorrisos com lábios poéticos que o silêncio das palavras alimenta
a noite melancólica da paixão”, e queixava-se por tudo e por
nada, faltava-lhe sempre alguma coisa
- ainda hoje coisas que
faltam dentro de coisas que sobejam,
se tinha a prata de
alumínio, faltava-lhe a heroína, tinha o dinheiro e faltava-lhe a
prata de alumínio e a heroína, pior, tinha tudo e o corpo rejeitava
em vómitos circulares que desenhava entre os plátanos e as
sandálias que trouxera de Luanda, no recreio da escola escondia-se
aos olhos do pinheiro manso inventando pinhões e vidros partidos, os
calções sentiam a geada doce da Primavera, tremia de frio,
enroscava-se nos abraços desertos que ouvia das palavras moribundas,
das palavras sujas, das palavras imundas,
- e a palavra amo-te
acabadinha de suicidar-se na rua Augusta, Tens a certeza miúdo?
sim pai, eu vi-a suspensa
da janela do terceiro andar, estava roxa, estava incrédula, e o
vento roçava-se nela e nele, quando o paragrafo inteiro, também ele
suspenso na janela, putrefacto no esqueleto da literatura solitária
que as noites de inverno constroem nas lareiras do sono,
perguntava-me a que cheirava o cadáver de um simples paragrafo que
quase nunca tive porque me faltaram sempre coisas, tinha a cratera do
vulcão e faltava-lhe o divino magma, tinha tudo e
- os calções sentiam a
geada doce da Primavera, o corpo rejeitava em vómitos circulares que
desenhava entre os plátanos
palavras que nunca
tiveste coragem de escrever no meu secreto diário, palavras de
merda, palavras como a palavra amo-te depois de suicidada, coitada
dela, da palavra amada, inventada por vezes no silábicos alumínios
que o mar deixa cair sobre a espuma doirada do mês de Janeiro,
ninguém, Tens a certeza miúdo? invejada por vezes no silábicos
alumínios que o mar deixa cair sobre a espuma doirada do mês de
Janeiro, e eu não sabia que dos beijos nascem poemas,
- ainda hoje coisas que
faltam dentro de coisas que sobejam,
cruzava os braços,
flectia os joelhos até me sumir nos xistos emagrecidos que as tardes
de Abril gostavam de escrever nos vidros das janelas dos barcos,
- “para a menina dos
sorrisos com lábios poéticos que o silêncio das palavras alimenta
a noite melancólica da paixão”, e
o que são poemas, pai?
Tens a certeza que viste a palavra amo-te suspensa na janela do
prédio da rua Augusta? Sim, Pai, Tenho a certeza, roxa, silenciosa,
imunda, suja, ah ah ah... poemas são palavras que se suicidam nos
prédios com escadas até aos sótãos virados para o Tejo,
sentavas-te e olhavas as longínquas manhãs inocentes depois das
viagem até ao abismo, e tinhas inventado o ciúme,
- e os vómitos
dilaceravam-me dentro das placas de gesso da pensão ALZIRA, mulher
de boas famílias, culta, poetisa, e às vezes escrevias nas costas
azuladas das portas da casa de banho as histórias sagradas, belas,
poeticamente difíceis de esquecer, e eu, eu descia as escadas e
quando pisava pela milésima vez os pesadíssimos paralelepípedo da
insónia,
já não conseguia
lembrar-me das palavras da tia Alzira,
-e tinha pena dela,
quando as pálpebras do
poema sobre a madeira imunda, espessa, onde em pedaços de papel
subtraído a uma velhíssima lista telefónica, ela, coitada dela,
assentava os números invisíveis dos bilhetes de identidade, também
eles, tal como a palavra amo-te, acabadinhos de suicidarem-se nos
jardins de Belém,
- e tinhas inventado o
ciúme,
e tinhas inventado a
palavra amo-te, e tinhas inventado a rua Augusta, e ainda hoje, ainda
hoje coisas que faltam dentro de coisas que sobejam; os teus lábios
poéticos que o silêncio das palavras alimenta a noite melancólica
da paixão.
(texto de ficção não
revisto)