Um dia, quem sabe, todos os poemas de Inverno se
transformem em rosas, um dia, talvez amanhã, ou, poderá ser mesmo
num Sábado qualquer, um dia qualquer, apenas um, de um calendário
de papel, ou daqueles virtuais que os nossos portáteis inventam para
nós, e tão parvos, eles, que se nós quisermos hoje não é hoje, e
se nós quisermos hoje é ontem, Dezembro de 1966, ou, ou se eles
quiserem amanhã, amanhã terça-feira de Março de 2015, um dia,
quem sabe, todos os poemas
Fiquem como as minhas mãos, pérfidas, com perfume
de vulcão estacionado no centro de uma cratera, com nuvem de vapor
que fingem ser cortinados, das janelas das palavras, quando chega o
murmúrio das imagens a preto e branco do álbum de fotografias do
Pai Fernando, Angola está lá, como estão os carris onde ontem
passeavam comboios para Mirandela, e hoje, hoje apenas linhas curvas,
rectas, círculos de lágrimas das rochas metamórficas com sombras
de pedra, ele acompanhava a linha de bicicleta pela mão, chegava ao
Tua, e subias as curvas inclinadas com sabor a saudade, apenas,
apenas para dar um beijo à mãe, fiquem todas, hoje não, hoje
Os carris e os túneis da saudade dentro de um álbum
de fotografias,
Hoje, hoje não, quem sabe amanhã, todos os poemas
se transformem em rosas de papel, quem sabe, ontem as flores tenham
conspirado contra o homem dos livros de granito, quem sabe, hoje sim,
eu, ele, nós os dois, sejamos esqueletos de vidros com mãos de
arame, hoje quem sabe, eu, ele, eu e ele, os dois, sejamos pedaços
de pedra mármore do túmulo de um dos manuscritos de Gogol que ardeu
na fogueira, louco, tu e eu, dentro de um buraco de areia, os nossos
corpos parecem raios de sol mergulhados em barcos de esferovite com
um motor de um carro de brincar, comprávamos pilhas com sabor a
limão, e ele, e eu, e eu e ele e o barco de esferovite, perdidamente
apaixonados como as águias nocturnas do chocolate amargo,
Os carris e os túneis, que têm?
Um dia, a escuridão transformar-se-á em lençóis
de prata com almofadas de oiro, E os carris? pergunta ele, que têm?
Respondo-lhe eu, Nada... Responde-nos os barco de esferovite com o
velho motor do carrinho de brincar, as pilhas, sabiam a limão,
amargo, o dia quando regressei e descobri que era um esqueleto de
vidro com mãos de arame, pergunto-lhe
Lembras-te? Claro que sim, como me lembro do dia
quando disfarçada de água da chuva entraste em mim, numa tarde de
Agosto, tinhas livros numa das mãos ínfimas, pequenas, como os
rochedos das praias imaginárias da nossa infância, e claro que
Não me recordo dos vidros partidos no recreio da
escola,
Amanhã, amanhã, amanhã terça-feira de Março de
2015, um dia, quem sabe, todos os poemas vestidos de arame-farpado,
em redor de um campo de minas como os seios camuflados dos grandes
edifícios que se escondem nas cidades e dão abrigo aos sem-abrigo,
todos, amanhã, quem sabe um dia destes, no calendário virtual do
meu portátil, eu, eu encontre os restos de saliva que sobejaram das
palavras mordidas pela serpente do envenenado homem das luzes de
linho, cansei-me, cansei-me dos calendários de papel com números
complexos, matrizes, equações diferenciais loucas de amor por
integrais triplas, e no entanto, ninguém, ninguém à espera delas
na cama nua das quadriculas de insónia,
Calçavas uns sapatos rabugentos, ouvia-os enquanto
descias o passeio que aproveitavas para observares distraidamente os
manequins nus, esqueléticos, das montras com roupas adormecidas
pelos candeeiros da noite embaciada pelo perfume das rosas junto à
cabine telefónica, de vidro, alumínio, e palavras que
desconhecíamos, e não sabíamos que dias depois
Os carris e os túneis, que têm?
Debaixo do braço transportavas um livro de Érico
Veríssimo “Clarissa”, a chave de acesso ao teu cofre, eu, hoje,
hoje talvez não, amanhã, amanhã sim, eu já o tinha lido, e
confesso que enquanto conversávamos sobre o livro íamos caminhando
em direcção ao tempo-espaço de Einstein, e hoje percebo, amanhã,
amanhã talvez, terça-feira de Março de 2015, o murmúrio das
imagens a preto e branco do álbum de fotografias do Pai Fernando,
Angola está lá, como estão os carris onde ontem passeavam comboios
para Mirandela, e hoje, hoje apenas linhas curvas, rectas, círculos
de lágrimas das rochas metamórficas com sombras de pedra, ele
acompanhava a linha de bicicleta pela mão, chegava ao Tua, e subias
as curvas inclinadas com sabor a saudade, apenas, apenas para dar um
beijo à mãe, fiquem todas, hoje não, hoje
Os carris e os túneis da saudade dentro de um álbum
de fotografias,
Como ficaram as tuas palavras dentro de mim, todas,
elas, disfarçadas de chuva de Agosto em final de tarde.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha