Abro-o sabendo que do seu
interior um pequeno riacho em rodopios transversais brincam no
silêncio de um cubo de gelo, a caixa dos sonhos em aspirais
complexas, deferido, a ex-mulher de mim descendo a rua financeira do
ciúme que as laranjas de S. Mamede de Ribatua sobejam nas clarabóias
dos lábios infernais, em flor de sorrisos nocturnos, a amante dela
chupava-te os dedinhos
dos pés,
até já meu amor delírio
das noites de sábado, abro-o, silencio-me em tua boca o chilrear dos
meninos vestidos de pássaros poisados nas árvores das tuas
pálpebras adocicadas, até já, volto já, fui, perguntava-lhe onde
estavam os pedaços de beijos que de manhã deixei em cima da
mesa-de-cabeceira, e a parvalhona
comi-os porquê?
dentro dos cubos de gelo,
mergulhava-me e desistia, procuras-me, sobejas-me, laranjas ao
pequeno-almoço, perguntava-te porquê
comi-os,
chupava-te os dedinhos
dos pés, e não sabia que no cortinado habitavam cerejas,
pequeno-almoço recheado de pão com marmelada, recheado de pão com
manteiga, doce de abóbora, comia-os, porquê, ontem acreditavas nos
sonhos construídos por pequeníssimas palavras, ontem acreditavas no
desejo, na garganta do destino, e tu
ensonados nas asas brancas
da morte
os pássaros tristemente
apaixonados
em busca da sorte nas
frestas invisíveis do granito esmigalhado
ensonados
todos os silêncios que
habitam nos quartos escuros sem janelas para o mar
quando barcos malvados
de corda ao pescoço
ensonados
enforcados
no profundo poço,
sem nome
com fome
o menino da batina encarnada
e calções às mesquinhas
rabugento
o infeliz momento
do tristemente apaixonado
vento lácteo em perfis de
cimento
tracejando sombras nos
lábios dos travestidos barcos de esferovite
espera impaciente a viagem
que a ponte de aço o leva
até à morte,
a boca alaranjada do
pirilampo ensanguentado
em palavras de miséria
murmuradas
das mãos tuas jangadas
esperadas
matas-te como se o vento
fosse uma simples frase de amor
um jardim em flor
sem nome
com fome
o homem
nas cordas ensonados das
asas brancas da morte,
e tu desejavas a loucura
quando me abraçavas sem me perguntares pelos beijos, deixavas-os
obre a mesa-de-cabeceira, deixava-os e eu olhava-os, tocava-lhes ao
de leve, sentia-os dentro do meu peito
os cubos de gelo?
dentro do meu peito os
olhos da cidade de aço à minha procura, procuras-me, escondo-me de
ti, escondo-me das árvores, dos pássaros, dos barcos
um jardim em flor,
sem nome
com fome
os homem das cordas de
vidro,
sabia-o e abria-o,
sabia-o e abria-o mas quis o destino que o amor da minha vida fosse
de plástico, e vivesse sobre uma mesa-de-cabeceira, longe, algures
entre um vão de escada e a porta de acesso ao teu corpo emagrecido
pela lentidão dos gemidos das cobras
nas cordas,
hoje imagino-te, não
sei, como, a ex-mulher dela amante do meu ex-patrão, cunhado do meu
irmão, e tio da minha filha, hoje imagino-te nos alicerces da
desgraça, um pedaço de pão, um punhado de trigo, hoje procuras-me,
fujo, escondo-me, de ti, dela, de vós, ontem eu percebia-me, tinhas
nos olhos um ramos de crisântemos, mas hoje
hoje, os homens das
cordas de vidro, sós, entre paredes e degraus, no telhado as
infindáveis curvas de linho, lençóis e pimenta, hoje, os homens
comi-os porquê?
os homens do eléctrico
galgado paralelepípedos acanhados, gajas desejando devorar livros e
papeis de parede, janelas sem olhos sobre a desgraçada cidade de
aço, flores moribundas, amenas, anãs algumas, comi-os porquê? Por
nada meu amor, a amante dela
dentro do meu peito os
olhos da cidade de aço à minha procura, procuras-me, escondo-me de
ti, escondo-me das árvores, dos pássaros, dos barcos, as azuis
cuecas de iodo que o mar transpirou enquanto as tuas mãos caminhavam
no interior de mim, quase natal, quase, e procuras-me em todos os
cubos de gelo, em todas as quatro paredes da insónia,
os homens, sem olhos
sobre a desgraçada cidade de aço com vultos amarelos, sujos,
imundos, longínquos, Porquê?
ontem apeteciam-me, os
teus dedos,
e tu, às vezes, muitas
poucas, por nada, os homens, de mão dada, há em ti uma boca
desejada, há em ti lábios de pérola adormecida, sem madrugada, sem
comida, há em ti, em ti há caramelos Espanhóis e cigarros ciganos,
tracejando o pechisbeque amor na feira da ladra, um velho procura-me,
um velho deseja-me, e eu
e eu, eu uma mulher
apetecível solitariamente a ver os barcos, imagino-te, procura-me,
desgraçada cidade de aço, sem braços, com beijos desperdiçados,
esquecidos sobre a mesa-de-cabeceira, olá menina Catarina, Olá
menina Adosinda, Olá querida amada Cidália,
comi-os, todos,
e procuras-me.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha