Um sofá de nádegas
amachucadas, espera-me, absorve-me talvez, quando eu regressar e
dentro de casa o silêncio de luz amovível de tecto em tecto, sem
cortinados, elas, as janelas, todas as madrugadas, elas, agachadas e
sobrevoando o capim da solidão, deixo fugir o sono, desce sobre nós
a insónia disfarçada de homem com lâmpadas de iodo na cabeça
poeirenta, nobre a cancela do jardim de estrelas, de madeira, pregos
enlatados dos primeiros versos que o mar desfez contra os rochedos
das algas moribundas, que nem o coração engole, friamente, as
línguas ásperas do desejo que elas, embrulhadas nas manhãs de
doces madrugadas, a falsidade, o ódio das palavras inscritas nos
pedaços de cartão, onde me deito, Cuidado Frágil, e sinto os meus
ossos na ferrugem embalsamada dos lábios das gaivotas, elas, as
janelas, embalsamada e embrulhadas no cetim alumínio que me ofuscam
os olhos de fome, sinto-as em gemidos absortos, mortas de fome,
sinto-as aos gritos, em gritos, todas, malditas escotilhas a que
chamam de janelas infinitas, velhas, mortas, vidros, buracos, o amor
dentro delas, do ranger de um sofá de nádegas amachucadas, uma
delas questiona-me
- amas-me?
talvez um dias as
escotilhas sejam de papel e as árvores
- que têm as árvores?
velhas, cansadas, elas,
janelas com fotografias para os telhados do poço da morte, um doido
em círculos apertadíssimos
- doem-me os pés,
doem-me os joelhos e todos os parafusos do divã,
- desculpa meu amor,
as árvores
- que têm as árvores?
apertadíssimos todos,
quando lá fora as árvores de papel tombam sobrevoando o capim, a
tua saia de cetim alumínio solta-se, embate nas rochas, e as tuas
magras coxas saltitando na tela pendurada no corredor, sinto o
acrílico teu púbis em tons de azul, parece, aparece o mar vestido
de mulher, vocês amachucadas, amam-se, desejam-se, como a chuva
quando cai nas poeiras cinzentas a lareira assassinada pelo vento de
incenso,
- talvez um dias as
escotilhas sejam de papel e as árvores com coração de xisto,
farto-me, desisto, talvez um dia as escotilhas do sonho sejam simples
marés de fim-de-semana, a casa junto à praia, a luz desligada desde
que partiste para as longínquas léguas de areia, um poço, da
morte, um louco homem fingindo círculos de luz nos carris amassados
que os comboios engolem antes de caminharem rumo ao Douro, socalcos,
pedras, tonturas de amêndoa com chocolate em overdose, doce, doce as
nuvens que transportas nos seios de amendoim, e matas os poemas
matas os poemas enquanto
olhas para as sílabas de amoreira que a tarde deixou cair quando
regressava dos teus abraços, meu amor
- amachucadas, elas, na
cama, amachucadas amam-se, amas-me?
um dia, em outro dia novo
com novo texto,
- matas os poemas, olhas
para as sílabas de amoreira, um novo texto nasce no teu peito de
noite sem sono, tomas as drageias, escotilhas, todas mortas,
escondei-vos nas coxas dormentes das asas sem destino, amachucadas
as árvores e os rochedos
e os cadáveres das folhas insignificantes onde escrevias as madeixas
loiras dos dias quando eras amante das garrafas de vodka, caias sobre
as sombras inventadas pelo louco homem do poço da morte, sobrevoando
docemente o capim, amachucadas
- as nádegas de um velho
sofá.
(texto de ficção não
revisto)
@Francisco Luís Fontinha