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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A tarde do nascimento do poeta- Francisco Luís Fontinha

 Numa qualquer tarde em Luanda, algures no bairro Madame Berman, sem precisar a data correcta, pois o narrador nunca o saberá, mas consta que foi ente 1966 e 1971, enquanto o senhor Fernando verificava quando tinha de renovar a carta de condução, o pequeno dos calções, aproximou-se dele e numa voz poética,

- “quero escrevelhe”,

O senhor Fernando num gesto afectuoso, deu-lhe uma folha e um lápis, para que o puto dos calções pudesse então escrever,

Mas parece que o puto queria escrever na carta de condução do pai e não na pequena folha,

Pacientemente, o senhor Fernando dizia-lhe que na carta de condução não,

O puto berrava,

E consta que foi a única vez em que o senhor Fernando lhe deu umas valentes nalgadas no rabiosque gorducho (diga-se que se tivesse levado mais não se perderia nada) até que a mãe do menino, a dona Arminda, o foi buscar e pegando-o ao colo com todo o carinho, retirou-o da sala, mas o puto não se calava, e quase todo roxinho, continuava

- “escrevelhe”, “escrevelhe” escrevelhe” escrevelhe” escrevelhe”…

Consta que o puto já se deliciava em rabiscar as paredes dos compartimentos nuns rabiscos pré-históricos, e desde esse episódio começou a rabiscar letras que às vezes se pareciam mais com o abstracto de que com palavras,

- “escrevelhe” escrevelhe” escrevelhe” escrevelhe”…

O puto foi crescendo, e já na adolescência começou a escrever compulsivamente e a desenhar compulsivamente, até que num acto de loucura, numa noite de loucura, queimou todos os papeis que tinha escrito e todos os desenhos; ele lá saberá a razão.

Hoje é fiel depositário de três caixotes onde habitam cerca de três mil poemas e textos; a maioria escritos à máquina, oferecida pelos pais quando fez quinze anos e comprada na loja do senhor Antoninho Torcato, a prestações.

Provavelmente terá sido nesta tarde que nasceu o poeta Francisco Luís Fontinha.

Só ele o saberá.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 28/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O Universo teu cubo invisível

 Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

Não

Estou cansado

Extremamente cansado

Cansado para me levantar desta cadeira

Andar uns quantos passos atá à cozinha

Erguer a mão direita em direcção ao botão…

E carregar

Com força

Portanto

Esqueçam

Não o faço

 

Depois

Pergunto-me o quão infinito é o Universo

Que se expande

Que não se expande

Não o sei

Uns dizem que sim

Que não

Que um dia o Universo vai começar a contrair

E tudo voltar a ser apenas um pequeno ponto

Do tamanho da cabeça de um alfinete

E recomeçará tudo novamente

 

Se eu pudesse

Se eu pudesse conversar com a primeira pedra a habitar a Terra

Se eu pudesse

Fazia-o

Fazia-o sem pensar duas

Três

Milhões de vezes

Ao cubo

Dentro do cubo

O vazio

As nuvens que às vezes aparecem nos teus olhos

(sabias que os teus olhos são poemas de amor?)

Pegava-lhe na mão

Sentava-me a seu lado

E perguntava-lhe porquê

Provavelmente

A pedra

A primeira pedra

E depois

Talvez ficasse sem jeito

Que emoção

Conversar com a primeira pedra a habitar a Terra…

Vamos tomar um café?

 

Olho o cubo que dorme todas as noites sobre a minha secretária

Olho-o

E pergunto-me se pelo facto de eu ter um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Poisado sobre a secretária

Sou mais ou menos feliz

Se sobre a minha secretária não tivesse esse cubo

Esse cubo pintado de encarnado

Era menos ou mais feliz?

E os milhões de lares

Espalhados por aldeias vilas e cidades

Que não têm um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Sobre a secretária

Na casa de banho

Cozinha

No quarto

Qualquer sítio

Em qualquer lugar

São mais felizes então?

 

Claro que não

 

Depois da primeira pedra

Vem o primeiro primata

A primeira borboleta

(a primeira flor)

A primeira mulher

Depois

O primeiro beijo

O primeiro poema

(e pergunto-me qual terá nascido primeiro: o beijo ou o poema?)

Depois

Depois nasce a primeira cadeira

O primeiro livro

A primeira carícia

A primeira lágrima

Depois

O primeiro livro

Nasce o primeiro livro de poemas

A primeira flor em papel

A primeira lua

E o último luar

 

(Claro que não)

 

A primeira troca de olhares

A primeira Primavera

A primeira paixão

 

(até agora ainda ninguém morreu desde o começo do Universo)

 

E para estar aqui hoje

Agora

Foi necessário nascer o segundo primata

O terceiro primata

O quarto primata

E agora sim

Agora já podemos matar algum ou alguns dos primatas

 

(O primeiro cigarro)

 

(neste momento um dos primatas é preso por excesso de velocidade)

 

Depois

Depois nasce a primeira criança primata

Ouvem-se os primeiros gritos

O primeiro choro

A primeira birra

O primeiro cocó

As primeiras palavras

Os primeiros números

As primeiras brincadeiras

As primeiras palavras ditas

E depois

As escritas

A escola

 

A primeira lareira

Do primeiro abraço

Quando se lê o primeiro poema

E agora sim

O beijo

Os cabelos

Os lábios

As tuas cochas

Os teus olhos quando vês a primeira estrela

A primeira dor

O primeiro desejo

A primeira árvore

 

Os meus primeiros pássaros

E os meus primeiros barcos

 

A primeira noite

A primeira noite dentro do cubo

Do cubo pintado de encarnando

 

(e quando me dizem que sou um falhado

Um perfeito idiota

O coitadinho

O maluquinho…

Eu penso

PORRA

Então não foi o meu espermatozóide

Que entre milhões conseguiu sobreviver?

 

E se não tivesse sido o meu espermatozóide o escolhido?

Se fosse outro…

Eu podia ser mulher

Homem

Mais baixo

Mais gordo

Menos parvo

E menos idiota do que eu sou

Mais simpático

E menos anti-social…

 

E continuo a olhar este parvo

Este parvo cubo

O cubo mais parvalhão que conheci

Desde que me lembro de conhecer coisas

 

(Coisas meu amor

Coisas)

 

O primeiro dia

Do primeiro sol

As primeiras chuvas

O primeiro calor

O último frio do Inverno

Antes do primeiro Verão

 

Depois

Depois meu amor

O meu primeiro machimbombo

A minha primeira cidade

A cidade perdida

Na mão do feio comboio em direcção ao mar

 

Ao mar

Meu amor

O meu primeiro mar

 

Meu mar

O meu primeiro mar

 

(Depois

O primeiro cancro

O segundo cancro)

 

 

Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

 

(Não)

 

Apenas porque estou muito

Muito

Mesmo

Muito cansado para me erguer desta cadeira.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

domingo, 11 de dezembro de 2022

Poucos dias um dia

 



Perguntavas-me o que eu queria ser

Um dia.

Olhava-te

Olhava-te e fixava o meu olhar no céu

E nunca tive coragem de te responder;

E tivemos muitos dias

Só eu e tu

Só tu e eu

E mesmo quando te vi a voar

Sobre as nuvens envenenadas da tristeza

Eu

Eu não tive coragem de dizer-te

Apenas

Que não queria ser nada

Ninguém.

 

Mãe

Simplesmente não quero ser nada

Ninguém;

Percebes?

 

Podia ter sido muita coisa

Umas boas

Outras más

Poderia ter sido estilista

Carpinteiro

Pedreiro

Agricultor…

Não

Nunca gostei da agricultura

Poderia ter sido serralheiro

Motorista não

Não

Nunca gostei muito de automóveis

Camiões

Não saí aos meus avós e pai

Eu era mais barcos

Poderia ter sido tanta coisa…

 

E hoje escrevo

E enquanto escrevo

Sei que não sou nada

E enquanto pinto

Nada sei que serei.

 

Também nunca quis ser o que não podia ser

Tão pouco

Se queria ser

E no entanto

Aqui estou

Não sendo nada

Preferindo o nada ao tudo

E mesmo que seja muito

É pouco

É nada.

 

Aquando me olhavas

Eu

O comandante deste navio

Mentia-te;

E enquanto esperavas uma simples resposta minha

Eu

Fintava o olhar

E distraidamente

Respondia-te;

Está tão lindo o céu de Luanda mãe.

 

 

 

 

 

Alijó, 11/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 10 de dezembro de 2022

Se eu não morrer

 Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a escrever as primeiras palavras

As tuas primeiras equações

Gostas de equações

As mais simples

Às mais complexas

Equações trigonométricas

Equações de segundo grau

Equações diferenciais

 

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o primeiro clarear da manhã

O teu primeiro luar

O primeiro pôr-do-sol

Se eu não morrer

Ler-te-ei o primeiro poema

Tantos poetas que tenho para te mostrar

Herberto

AL Berto

O'neill

Cesariny

Se eu não morrer

Ler-te-ei textos de Proust

Gogol

Ou de Luiz Pacheco

 

Se eu não morrer

Ensinar-te-ei a desenhar nos lábios da madrugada

A pintar o sono na geada

Se eu não morrer

Levar-te-ei a ver o mar

E os barcos da minha infância

E as mangueiras da minha infância

 

Se eu não morrer

Ler-te-ei os meus textos

Os meus poemas

Os meus livros

E mostrar-te-ei as minhas telas

 

Se eu não morrer

Mostrar-te-ei como se constroem pontes

Edifícios muito altos

 

Se eu não morrer

Oferecer-te-ei os teus primeiros livros

As tuas primeiras tintas

As primeiras telas

Se eu não morrer

Tirar-te-ei os teus primeiros retractos

E conhecerás as tuas primeiras cidades

Vilas

E aldeias

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao Tejo

E a todos os rios do Planeta

Onde há um rio para olhar

 

Se eu não morrer

Ouvirás todo o tipo de música

E assistirás a todo o tipo de dança

Se eu não morrer

Levar-te-ei ao circo

Ao teatro

Cinema

 

Se eu não morrer

Farei tudo isso

Enquanto sentado numa cadeira em frente à Baía de Luanda

Espero que me levem

Que me levem para as sombreadas paisagens de prata

E me deixem brincar no telhado zincado de uma nobre cubata

 

Se eu não morrer.

 

 

 

 

 

Alijó, 10/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Trago-o no peito – o teu olhar

 Às sete e trinta horas da manhã

Num lindo e belo Domingo

De sol e calor

Em Janeiro

Acordaram-me;

Olho-a

Ela olha-me

Ela beija-me loucamente (era a primeira vez que me beijava)

Toca-me docemente

Depois

Pego-lhe no olhar (de quem acaba de dar à luz)

E guardo-o no peito.

 

Trago-o no peito.

 

Sou pastor de um lindo rebanho de palavras

Quase sempre

Ao final da tarde

Levo-as para o pasto

Uma fina e branca folha em papel

Depois

Tenho o final da tarde

E toda a noite

Depois

Regressamos

Ficamos exaustos

Cansados,

 

Dormimos; eu e o meu rebanho de palavras.

 

Às sete e trinta horas da manhã

Num lindo e belo Domingo

De sol e calor

Em Janeiro

Acordaram-me…

 

Acordaram-me para a vida.

 

Pastor de um belo rebanho de palavras

Desde as sete e trinta horas da manhã

Num lindo e belo Domingo,

 

E enquanto as palavras

O meu rebanho

Olham os rabiscos de uma tela minha

Pego na fotografia dela;

E percebo o quão ela me amava!

 

Pego-lhe no olhar (de quem acaba de dar à luz)

E guardo-o no peito,

 

E no peito construo uma escultura de saudade.

 

 

 

 

 

Alijó, 08/12/2022

Francisco Luís Fontinha

(à minha mãe)

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Quase tudo morre

 Sejamos francos

Quase tudo morre

 

Morrem as árvores e os pássaros

E os filhos dos pássaros

E os filhos das árvores

Morrem os barcos

Os filhos dos barcos

E os passageiros dos barcos

Morrem as estrelas

E um dia morrerá a Terra e a Lua

Morre a noite

Quando acorda o dia

E morre o dia

Quando acorda a noite

 

Morrem os rios

E as montanhas

Morrem os corpos

E há corpos vivos que estão mortos

 

Um dia morrerá o sol

 

E se a lua morrer

Não terás luar

 

E se o sol morrer

Não terás o pôr-do-sol

 

E o que te importa olhar o mar

Se não há o pôr-do-sol?

 

Morrem as casas

As ruas e as cidades

Morrem os mendigos e a pobreza

Quando morrem os pobres

 

Morreu o portão de entrada

Do quintal de Luanda

Quando me sentava à espera do avô Domingos

Depois de uma longa tarde a passear os machimbombos com um cordel

Pelas ruas de Luanda

Morreram as mangueiras do quintal

Morreram as mangas

Morreu o avô Domingos

E os machimbombos do avô Domingos

Morreram os calções e as sandálias

E o triciclo

Morreu o chapelhudo

Depois

Morreram os papagaios em papel

E a construtora dos papagaios em papel

 

Morreu a escola junto ao jardim

(assassinada)

Morreu o antigo campo de futebol

E que hoje é o mercado

Morreu o velho Maximiniano

Que com um carro de mão

Transportava as bancas em madeira para aluguer nos dias de feira

 

Morreu o Dispensário

A menina Maria e a Tuberculose

(felizmente que a tuberculose morreu)

Morreram quase todos os gajos

Que fumavam charros nas escadas do Dispensário

 

Antes do avô Domingos

Morreu o avô Francisco

Depois a avó Valentina

A avó Silvina

O tio Augusto

Primos

Tios

Primos e tios e tias e primas

Morreram

 

Morreu o café Luso e a cozinha do café Luso

E os charros que se fumavam na cozinha do café Luso

E alguns dos gajos que formavam charros na cozinha do café Luso

Morreu o primeiro Oásis e hoje vendem lá comida de plástico

 

Morreu a peixaria que habitava entre o Oásis e a Ribadouro

 

Morreu o café da Paz

E as janelas do café da Paz

 

Morreram os amigos

Os que fumavam

Os que bebiam

Os que fumavam e bebiam

Os que nem fumavam nem bebiam

 

Um dia

Começou a morrer o cabelo do meu pai

Depois e aos poucos

Toda a parte direita da cara e o couro cabeludo

Morriam

Caíam camo caem as folhas no Outono

Por fim

Morreu o meu pai

 

Ao outro dia

Começou a morrer o cabelo da minha mãe

(dona Arminda, quantos cigarros fuma por dia? – nenhum, Doutora Luísa, nunca fumei!)

- O seu filho tem de deixar de fumar

Não deixei

E também a minha mãe

Morreu

 

Morreu o barco que me trouxe de Luanda

Morreu a carruagem da CP que me trouxe de Lisboa para o Porto

E do Porto para o Pinhão

Morreu o carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

E o motorista do carro que me trouxe do Pinhão para Alijó

 

Morre o silêncio

O beijo

Morrem os lábios onde brincam os beijos

Morrem os olhos que nos iluminam

E a luz que ofusca os olhos

Morre a manhã

E o desejo da manhã

E a manhã em desejo

Morre o abraço

O uísque

E o bagaço

Morre a paixão

Morre o amor

O marido perde a companheira

A companheira perde o amante

O filho perde o pai

O pai perde o filho

Tudo perde

Tudo morre

 

Morre a lareira quando deixa de ter lenha

E morre a lenha

Quando a lareira acorda de mau humor

 

- E a saudade, meu filho?

O que tem a saudade, mãe?

A saudade morre, mãe?

- A saudade, meu querido, a saudade nunca morre

 

- E os poemas, meu filho?

O que têm os poemas, pai?

Os poemas morrem?

- Os poemas, meu querido, os poemas nunca morrem

 

Morreu o banco de jardim

Que estava estacionado em frente aos Correios

À noite

Sentava-se lá uma linda mulher

De livro na mão

Livro que eu já tinha lido

E quando percebi

Já tinha a minha mão no livro dela

E ela tinha a mão na minha mão

Falávamos de literatura, poesia, arte e música

Até que de madrugada

A mãe dela

Também já morta como o banco de jardim

Vinha-a buscar

E eu furioso

Pronto a assassinar o resto da noite

Para que brevemente fosse dia

Durante a tarde

Escrevíamos em conjunto poesia

Morreu o banco de jardim

Morreu a mãe da linda mulher

A linda mulher não sei se morreu

Mas o livro ainda deve andar por qualquer uma das prateleiras da minha estante

 

Sejamos francos

Quase tudo morre.

 

 

 

 

 

 

 

Alijó, 06/12/2022

Francisco Luís Fontinha