Assim que acordávamos, ouvíamos
o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite; o
cabelo tinha-se-lhe esvoaçado, como as árvores quando se despem para dormir.
O sono levava-a e trazia-lhe
o desconsolo de viver acorrentada a uma sombra que alguém tinha trazido da longínqua
Angola, na algibeira do avental, algumas palavras despregadas do uivo dos
mabecos envenenados pelos sonhos de uma madrugada recheada de pequeníssimos papeis
onde habitavam frases de revolta e agonia.
Ouviam-se os pássaros nas
ardósias manhãs de Verão, junto ao mar, ou mais longe do que isso, os barcos de
cartolina regressavam de mais uma viagem ao infinito; as equações do sono
também, por vezes, se faziam acompanhar pela solidão do capim onde se escondiam
algumas gaivotas que procuravam as cinzas da tarde. Sabia que um dia, também o
seu próprio cabelo, seria a madrugada travestida de sono, que muito mais tarde,
se suicidaria junto à baía. Tínhamos medo da noite. Tínhamos medo do sofrimento
que depois da tarde se despedia do silêncio que a cada segundo que passava, que
a cada minuto de sofrimento, aparecia à janela do cansaço.
Sabíamos que os cabelos
eram apenas pequenas sombras que todos os dias iam ao rio em busca da primeira
lágrima da manhã. Um dia, junto ao mar, cresceu uma pequeníssima lâmina de
sangue, uma ferida que ainda hoje sangra, que ainda hoje dorme numa cadeira que
ainda hoje inventa sorrisos no espelho da sanzala.
Assim que acordávamos, ouvíamos
o sono que regressava da tempestade deixada ao abandono durante a noite, todos
os barcos tinham no olhar um enorme sofrimento que aos poucos dava à costa e
contra os rochedos se transformavam em tiras de sono. O corpo começava a
desfalecer. O corpo começava em putrefacção e o intenso cheiro a gladíolos era
tal que quase adivinhava-se o silêncio que hoje pertence aos grandes
petroleiros da cidade.
A cidade envelhecia. O
corpo, sangrando como uma velha fonte da aldeia, tinha nas mãos as cinzas dos
ossos desfigurados pelos comestíveis cogumelos que só os poemas conseguiam
construir no profundo mar das marés em delírio; o corpo sangrava porque existia
sobre a pele a fragância laminada de uma tempestade perfeita, depois, eram as
cadeiras da cozinha em pequenos gritos que apenas eram sentidos pelos velhos
azulejos que numa qualquer sexta-feira alguém deixou ficar debaixo da árvore
junto à porta.
Do cabelo, alguns
silêncios despertavam. A tinta que às vezes escorria no seu rosto era o
principal motivo de se esconder no quarto e desligar o interruptor do sonho que
trazia junto ao peito. Todos os brancos cabelos que ela tinha um dia tinha
prometido ao criador, hoje eram apenas vestígios de lágrimas e silêncios.
Sabia-se que a morte
tinha descido à velha cidade.
Os cabelos brancos
tinham, finalmente, encontrado a liberdade.
E do cabelo, alguns
silêncios despertavam…
Alijó, 19/06/2022
Francisco Luís Fontinha