sábado, 6 de janeiro de 2018

Esqueletos de xisto


Somos canções de espuma.

Somos corações de aço em revolta,

Somos o tecto da sonolência repartido pelo perfume da tarde,

Somos a esperança,

Somos os socalcos embalsamados junto ao rio…

Somos canções de luta,

Cansada noite entre sombras e cabeças de vidro,

As ruas, os edifícios mórbidos dos condomínios desassossegados,

Somos palavras,

Poemas, somos livros desajeitados,

Nas salinas do amanhecer,

Somos Pátria,

Somos sonâmbulos enfeitados de espuma…

Nas canções de espuma.

Somos a liberdade,

Somos os jardins abraçados à liberdade,

Somos desempregados, homens, mulheres e crianças,

No circo da aldeia,

Somos a bandeira,

Somos a esplanada junto ao mar,

Somos a noite,

Antes de acordar.

Somos equações, metáforas e limões…

Somos cabrões,

Árvores da inocência,

Somos o Inverno,

Nas lareiras do Inferno,

Somos o vento,

A geada e o pensamento,

Somos tudo o que quiserem…

Só não somos esqueletos de xisto.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 6 de Janeiro de 2018

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

A chuva


A chuva. As noites recheadas de literatura, lá fora, pedacinhos de sonhos voando sobre o meu corpo ensonado, a poesia entranhada no silêncio da noite, acorrentadas as mãos ao corrimão da saudade, sempre que possível, uma sombra na minha mão,

A chuva.

Recordo os teus lábios quando te sentavas no meu colo, dentro de mim uma corrente em aço pronta a disparar a bala da cegueira, as palavras embriagadas no teu peito, a chuva, enraizada no teu cabelo, frágil, mórbido, e, sempre que adormeço tenho em mim todos os sonhos, o desenho dos sonhos, a vaidade de nada ter, a não ser, alguns livros, nada mais, alguns livros e a chuva para recordar o teu sorriso.

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 25 de Dezembro de 2017

domingo, 17 de dezembro de 2017

Menino sem destino


Conheci-te na plenitude da vida,

Eras uma árvore sem destino,

Cansada de habitar o meu jardim,

Parti e ficaste suspensa no cacimbo, e, até hoje, vives na clandestina noite,

Ausente,

Permanentemente sofrida com os corpos que abraçaste,

Longínqua tarde de despedida,

Nada a fazer, meu amor,

A saudade alicerça-se ao olhar dos flamingos,

Saltitando na tua sombra,

A morte, a sofrida morte entre parêntesis,

Numa pequena folha de papel…

 

Conheci-te era eu criança, menino sem destino,

Brincava nos teus braços,

Como se fosse uma andorinha na Primavera,

Alegre, agachava-me debaixo de ti, meu amor,

E, alegremente sonhava com os teus frutos,

As mangas, as folhas caiam derradeiramente sobre o meu cabelo,

E dos calções, as primeiras palavras escritas no teu tronco,

 

Amo-te!

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 17 de Dezembro de 2017

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Tardes meninas


Todos os dias são horários perdidos,
Filhos ensonados
Nas lágrimas da madrugada,
Todos os dias são barcos esquecidos
No cais da alvorada,

Todos os dias são pássaros cansados.

Todos os dias são corpos embalsamados,
Corredores ensopados
De tristeza e azedume.

Todos os dias ardem. Todos os dias são lume
Que a lareira consome,
Todos os dias são fome,
Nas tardes de ciúme.

Todos os dias são morte,
Manhãs sem sorte,
Todos os dias são horários perdidos
Nas montanhas assassinas,
Todos os dias, jardins proibidos,
Em tardes meninas.



Francisco Luís Fontinha
Alijó, 7 de Dezembro de 2017

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Viagem




Bebo o veneno da insónia.
Desamarro as cordas da solidão, logo pela manhã,
Tenho na mão a magia do sono, desprovido de sonhos,
Na lentidão, o adeus, como as flores em despedida.
Desenho nuvens no teu triste olhar, uma desgraça…
Pois eu nunca soube desenhar,
Escrevo palavras, bebo livros de poesia, e assim passo o dia,
Cansado das árvores, cansado das casas envelhecidas,
Cansado da vida.
Bebo o veneno da insónia.
É madrugada, acendo o interruptor da desgraça, sou livre,
Aprendi a voar no teu cabelo,
Sou astronauta reformado,
Carpinteiro no activo,
Sou jardineiro sem-abrigo…
Nos teus lábios de trigo.
Bebo a poesia dos mortos, e percebo a tua dor, quando acorda a noite,
Puxo de um cobertor,
Fico à lareira,
Até que as estrelas me levem para longe.



Francisco Luís Fontinha
Alijó, 5 de Dezembro de 2017

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

THE END


Fumo este pobre cigarro que me há-de matar,
Mas a morte é apenas o THE END do filme da minha vida,
Alguns farrapos, um par de sapatos e uma caixa em madeira,
Sempre adorei o cheiro da madeira, logo pela manhã, ao acordar,
Fumo este pobre cigarro porque me dá prazer, e me alimenta de madrugada,
Não, não penso na morte, porque no fundo, ela é bela, como as palavras que não consigo escrever,
Fumo este pobre cigarro sabendo que vou morrer…
Mas quem não morre?
Todos morremos, até o próprio saber, até as cidades a arder e o prazer.



Francisco Luís Fontinha

domingo, 3 de dezembro de 2017

A saliva do desejo


Tens nas veias a saliva do desejo,

O cansaço disperso, quando a alvorada se despede de ti,

Os Oceanos infinitos entre quatro paredes de vidro,

O sangue das palavras embriagadas pela insónia,

Depois acordam as estrelas,

É dia,

Encostas-te a mim, dormes, sonhas, escreves no meu olhar as palavras proibidas,

É dia,

Pegas na minha mão, levas-me para os jardins longínquos da memória,

Ouvíamos música, líamos os limos da madrugada, na serpente, a maçã envenenada,

E outras coisas mais…

Vivíamos sonhando com livros em xisto, descendo os socalcos da miséria,

O poço da aldeia, a água límpida da manhã,

Que absorve toda a porcaria das tuas veias,

Está frio, ranges os dentes e entrelaças as mãos,

Desprega-se do teu cabelo, finíssimos pingos de geada,

Até que seja noite na nossa cidade,

Recordas-me as árvores no Outono, aos poucos despidas, sombrias…

Porque a noite é vadia, porque a noite traz recordações de outros tempos,

Relógios ensanguentados de saliva, do desejo, que alimentam as tuas veias.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 3 de Dezembro de 2017

sábado, 2 de dezembro de 2017

A espuma que embrulha o teu jardim


O silêncio de espuma que embrulha o teu jardim, o banho imaginário nas traseiras da casa onde habita o teu jardim, o teu corpo é um esqueleto de veludo, fossilizado nos fantasmas da noite, regressa o mar, traz na algibeira as flores da madrugada, simples, magoadas, como as sentinelas da morte,

O ausentado menino dos socalcos de xisto, que brinca nas margens do rio envenenado pelas enxadas da insónia, tenho medo, tenho medo dos alicerces da dor quando do teu corpo apenas consigo observar estrelas e fumo…

Ao amanhecer,

A trovoada que abraça a parede granítica do sonho, o miúdo complexo em círculos no quintal infestado de Mangueiras e Mangas, e quando ele percebe, tem um papagaio em papel brincando entre os finos dedos, não chove, deixou de chover nesta terra, deixei de ouvir o cheiro da terra queimada, e o poço é cada vez mais fundo, observo-o, alimento-o, e sinto o peso das plumas nocturnas dos bares de Lisboa,

Ao amanhecer, os vidros das janelas rangem de frio, a lareira morta na esperança de acordar de madrugada, e o silêncio de espuma que embrulha o teu jardim, o banho imaginário nas traseiras da casa onde habita o teu jardim, cobertos por um finíssimo cobertor de geada.

 

 

 

Francisco Luís Fontinha

Alijó, 2 de Dezembro de 2017