terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Orvalho de ossos


Porto, 27 de Janeiro de 2015


Não te oiço
olho os pássaros suspensos nas árvores
e imagino-te um poema em construção
não te oiço
mas sinto o ranger do teu corpo
como um comboio descontrolado
triste...
tão triste que não sabe o significado da dor
tão triste... que se aprisiona no silêncio de um longínquo corredor
tens nos olhos a noite estampada
e não existem estrelas nas tuas mãos...
nem luar no teu sorriso
não te oiço
invento horas num relógio imaginário
os dias
as manhãs
tudo não passa de um sonho
e não te oiço
meu querido
porque imagino-me nos teus braços
passeando as ruas de Luanda
víamos os barcos
e as sanzalas...
sem que eu percebesse o que era a morte.


Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O encontro


O frio entranhava-se-lhe nos ossos fictícios de pequenas partículas de desejo, António inventava fogueiras no olhar, esfregava as mãos como se de um reza se tratasse, mas não, a rua deserta deixava-lhe suspenso nos ombros um fino silêncio de noite, imaginava vãos de escada em cada esquina, desenhava na geada pequenos quadrados, depois, de pé ente pé saltitava como a queda de uma folha,
Um cigarro adormecia-me a alma, reclamava ele quando dois adolescentes se abraçaram a ele
E ele?
Incrédulo,
Vocês. Aqui?
Sim, pá, nós aqui,
António florescia, António corria calçada abaixo até ao rio, sorria... e regressava,
Não,
Não acredito que os meus irmãos estejam aqui, comigo, só nós,
Não,
Um cigarro, tem lume? Que não, que não,
Vocês aqui...
Meus Deus, tanta solidão, frio, fome...,
Foste tu que quiseste, ou não?
E António fulminava o irmão Miguel com as pálpebras inchadas,
Eu é que quis...!
Quase como lâminas afiadas, depois, o acordar da cidade, os primeiros automóveis do dia, depois os últimos bêbados da noite, e depois
Não, não acredito,
Os Primeiros cheiros de Lisboa,
O fumo argamassou todas as palavras... Meus Deus, vocês aqui...


(…)


(Texto ficção)
25/01/2015
Francisco Luís Fontinha – Alijó

Viajante secreto – o homem sombreado

(desenho de Francisco Luís Fontinha)


O desejo cansado do solstício envenenado
das palavras o ranger da porta sem habitantes
que a noite comeu
o desejado corpo nos pindéricos rochedos de papel
voando sobre a cidade dos machimbombos
o entardecer não regressa nunca
o viajante secreto enlatado num caixote em madeira
o homem sombreado dos alicerces de prata
afogado num pedaço de terra...
hoje
hoje não vi o mar
nem os barcos de esferovite construídos por crianças junto à ribeira...


Francisco Luís Fontinha – Alijó
Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2015