sábado, 23 de novembro de 2013

A máscara de vidro

foto de: A&M ART and Photos

Começávamos a alimentar, primeiro os porcos e as galinhas, depois eles, e nós, quase sempre, os últimos da ninhada, nunca chegava, parecia-nos pouco, ou nada, sentávamos-nos sobre o tanque do terreiro e olhávamos o silêncio repatriado das papoilas navegantes das caravelas em bolor, sentíamos a ondulação da tristeza a entranhar-se-nos como facas de um velho faquir no tronco da velha árvore do recreio,
Recordas-te ainda dos arvoredos infelizes que dormiam em nossa casa?
O velho faquir tinha uma mulher que costumava aparecer junto a nós, sempre de branco, talvez porque ela apenas vivia de noite, porque ela era filha da noite, poderia eu perguntar-me se ela era a minha mãe, pois eu
Adoro viver de noite, queria ser a noite sem interrupções, lanternas mágicas ou... cortinados com estampados de verniz e cansados nos arames verticais das ruas entupidas de lixo, mendigos, nós à procura de outros mendigos
O Velho?
As facas gemiam quando entravam na fina casca da madeira e não sabíamos que o velho faquir usava uma máscara de vidro para que ninguém o reconhecesse... ao que parece, ele
Eu sou o filho da mãe noite, eu sou a faca que rompe a madrugada, eu sou a roseira que quando chora
Dela brotam as pequenas gotículas de sangue que a saudade esconde na sombra das mangueiras dos quintais longínquos das esplanadas viradas para o mar, o filho da noite, eu, eu não sabia que existiam eléctricos, não sabia o significado de eléctrico... e dizia ao meu pai que o autocarro da carreira se apelidava de
Machimbombo,
Eu sou o filho da mãe noite, eu sou a faca que rompe a madrugada, eu sou a roseira que quando chora, ouvem-se-lhe os picos em aço inoxidável infestarem a velha árvore do recreio, rompíamos as calças, e usávamos joelheiras em napa para disfarçarmos os tentáculos e húmidos buracos da Primavera,
(começávamos a alimentar, primeiro os porcos e as galinhas, depois eles, e nós, quase sempre, os últimos da ninhada, nunca chegava, parecia-nos pouco, ou nada, sentávamos-nos sobre o tanque do terreiro e olhávamos o silêncio repatriado das papoilas navegantes das caravelas em bolor, sentíamos a ondulação da tristeza a entranhar-se-nos como facas de um velho faquir no tronco da velha árvore do recreio, e não sabíamos que havia dentro de nós uma fina tábua, quase invisível, recheada de prego, e durante a noite, o velho faquir...)
Adormecíamos acreditando que tínhamos o estômago cheiro, estávamos fartos, tão fartos que até inventamos uma sanzala em papel só nossa, a nossa sanzala de papel com pequenos charcos para durante a noite
Chapinávamos nos charcos da sanzala de papel inventada por eles e acreditávamos que éramos felizes assim,
Assim,
Como?
O machimbombo,
A chuinga estremecia-me a dentadura de marfim que tinha partido do jacaré em pau-preto, havia uma imagem que nunca esquecemos, os barcos zangados rompendo pela cidade como animais ferozes e envenenados pelas castanhas ondas que o abismo desenhava em nós, e tu, e eu,
Dormíamos,
Sou teu filho, tu, a noite que me acolhe, alimenta, afaga o cabelo,
Branco?
Não negro,
As roseiras?
Não às bolinhas,
Esqueci-me da cor do meu cabelo, esqueci-me que a minha mãe dorme enquanto eu, eu sonho, e invento palavras para te recordar dentro de uma lápide sem nome, idade, como o poema escrito e deixado sobre a mesa... depois de fazermos amor... voavam os campos de centeio que zumbiam em Carvalhais, olhávamos as espigas do doirado milho...
E não sabíamos que Machimbombo era autocarro da carreira...


(não revisto – ficção)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Novembro de 2013

os triângulos insectos

foto de: A&M ART and Photos

os triângulos insectos que o sofrimento padece
quando lhe pertencem as tuas mãos de andorinha selvagem
os senos inventados dos lábios em engrenagens que à tua boca atracam
e se afundam como serpentes cordas em nylon emagrecido que a madrugada alimenta
os triângulos insectos que se alicerçam ao teu peito
bebíamos pétalas de silêncio em efusão de sílabas desastradas como pedras de calçada...
havíamos roubado todos os barcos naufragados das avenidas embriagadas
entravam em nós marinheiros e meninas de mini-saia doirada com círculos encarnados
pensávamos que era o rosto da lua
mas a lua nunca foi encarnada
mas a lua nunca pertenceu aos barcos envergonhados das avenidas embriagadas...
então?

(os cossenos dos teus seios dentro de tristes equações diferenciais
depois
havíamos roubado todos os barcos naufragados das avenidas embriagadas
e ficávamos com as tangentes do sofrimento que sobejavam das flores do medo...)

então
então pensávamos que o seno hiperbólico da saudade vivia no mesmo quarto que os beijos cansados
dos triângulos insectos em teus cabelos mergulhados na geada cristalina da montanha dos peixes...
então...
então víamos o regresso da paixão em ensonadas linhas paralelas
então...
ouvíamos os uivos grunhidos dos corpos em movimento uniformemente acelerado
parávamos em frente aos telhados de zincos dos guindastes da pobreza...
então...
então percebíamos que as palavras escritas nos quadriculados cadernos...
eram os encarnados círculos disfarçados de cossenos parvos
disfarçados de senos loucos que a trigonometria inventou para nós...


(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha – Alijó
Sábado, 23 de Novembro de 2013