quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A noite

A noite tem algo de especial, de belo, a noite quando desce até à montanha e um corpo desassossegado se levanta e sem pressa caminha e caminha e caminha, e a noite, a noite o acompanha,
A noite é assim,
Um silêncio poético dentro do livro dos sonhos,
A noite, a noite é a almofada de deus, e deus, deus uma equação matemática complexa, incompreendida, e quem descobrir a resolução desta equação terá o poder de criar o universo…

terça-feira, 22 de novembro de 2011


59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Os gemidos das palavras

Baixo os braços e encosto-os às silabas solitárias,
As palavras deixaram de crescer em mim depois de a tempestade ter derrubado as árvores do meu quintal, do vento apenas sobejou os pequeníssimos fios de luz da tarde, e no teto do céu meia dúzia de estrelas esquizofrénicas brincavam com um triciclo de madeira,
Baixo os braços,
Desisto de olhar novamente o mar e sinto que não tenho coragem para lhe tocar, passa por mim um paquete enrolado nas ondas adormecidas e cerro as janelas do meu olhar, não barcos, nunca mais tocarei num barco, não gaivotas, nunca mais tocarei numa gaivota, não pôr-do-sol, nunca mais tocarei no pôr-do-sol,
Baixo os braços e escondo a cabeça debaixo do pavimento térreo da minha cama como a avestruz quando cansada quando triste quando desanimada,
- Quando só,
- Eu muito só,
Eu triste e desanimada,
E bato as asas em direção às nuvens onde me esperam, e sentado à direita dele, ela deitada sobre um feixe de mel e algodão doce, bato as asas em direção às nuvens onde me esperam e sobre a mesinha-de-cabeceira uma ardósia despida que mergulha na banheira,
- Acaricia-se no vapor da madrugada,
E as palavras em gemidos contra os azulejos pintados com sorrisos e beijos, flores, as flores que dormem no corredor do meu casebre,
Eu triste,
- Eu muito triste,
Eu tropeço nas flores e uma lágrima nas primeiras chuvas se abraça à terra ressequida,
Acaricia-se no vapor da madrugada, e a ardósia masturba-se com um pedacinho de giz, e de dentro da parede do quarto emerge um crucifixo embebido em vodka, e que saltita na Ajuda e rebola até ao rio,
Sinto frio e deixo de tocar em barcos, sinto frio de deixo de tocar no mar, sinto frio e deixo de tocar em gaivotas,
- Ela masturba-se,
A ardósia sorri na sombra do candeeiro a petróleo,
- Eu triste e desanimada deitada sobre a mesinha-de-cabeceira e espero e espero e espero pelo abraço do Carlos, e espero e espero e espero, e do meu púbis as ondas do mar e sinto um arrepio de luz, e a manhã começa aos poucos a erguer-se entre as sementes trazidas pelo vento,
As palavras deixaram de crescer em mim depois de a tempestade ter derrubado as árvores do meu quintal, baixo os braços e encosto-os às silabas solitárias, ela masturba-se na solidão da noite em soluços de suicídio, eu muito triste,
- Eu muito triste e desanimada,
As flores,
Das flores os pequeníssimos fios de luz da tarde e meia dúzia de estrelas esquizofrénicas, nas flores as palavras de suor que transpiram de uma finíssima folha de papel invisível,
E nos lábios de uma mulher invisível,
- Eu triste e desanimada,
As acácias despedem-se das silabas solitárias,
- Eu triste e desanimada, eu desanimada e muito triste,
Estar só dentro de uma caixa de sapatos,
E oiço os gemidos das palavras que acordam na garganta da ardósia,
E o Carlos não vem,
E morro dentro de ti como uma alga atirada contra as rochas da solidão,
- E o Carlos que não vem…
E espero e espero e espero,
E morro dentro de ti.

(texto de ficção)

A tarde

A tarde, suspensa
Entre duas conversas de ninguém,
O teu relógio atómico
Marcava dezassete horas, dezassete minutos e dezassete segundos,
O meu telefone, deixou de tocar,
Arrumaste-me na prateleira do teu pensamento,
No cantinho junto ao desejo,
Mesmo debaixo da saudade.
Lá fora, no esquecimento,
Ninguém…
Apenas os pássaros à tua procura, irritados
Com a tua ausência.
A tarde, suspensa
Na maré, finge que sou esquecimento,
Monstro marinho,
E sinto-me transportado
Para o longínquo destino; o meu passado.

A tarde, suspensa
No teu relógio atómico,
E amanhã, ninguém se lembrará de ti,
É outro dia, outra tarde, desconhecido momento.

59,4 x 84,1 (desenho de Luís Fontinha)

Carta a deus

Nem sei como começar, Pelo princípio Rapaz pelo princípio, então é assim e nem sei como devo tratar-te, deixa lá o tratamento Rapaz o tratamento não importa o importante é o que tu tens para me dizer, e tanta coisa que tenho, então começa, meu deus ou simplesmente deus ou amigo?, isso não importa, está bem Meu deus às vezes fico sem perceber a razão da tua existência, Como assim Rapaz?, Não sei… é tudo tão estranho…, continua, quando penso fico com a sensação que existes apenas para te divertires à nossa custa, Estás a ser injusto Francisco Não é verdade o que afirmas, está bem Desculpa, mas é tudo tão estranho, Estranho?, Sim estranho Repara Desculpe Repare quando penso em si parece que desde que nasci nunca quis saber de mim Nunca e que nunca está ao meu lado Nunca e que eu não sei explicar mas é tudo tão estranho meu amigo Tão estranho e Desculpe-me mas parece que nunca quis saber de mim.
Muito injusto Francisco Muito injusto E quando estiveste a morrer quando eras bebé quem julgas que te segurou na mão e não deixou que vacilasses, Porquê Porque não me deixaste morrer?, Porque Rapaz a minha função não é salvar nem matar A minha função é segurar na mão de quem sofre e acompanhá-la, Só isso? E achas pouco?, Parece-me pouco!
Às vezes acredito que está sentado num trono de oiro a olhar-nos A divertir-se à nossa custa e a contar as estrelas do céu, E voltando à nossa conversa Quem pensas que esteve ao teu lado quando mais precisaste E já sei que me vais responder, Os meus pais, E só eles?, que eu saiba Só, E eu? Acreditas que nunca estive ao teu lado?, Sim acredito, Mas não é verdade Sempre estive ao teu lado Sempre, É tudo tão estranho… meu Amigo.
Parece-me que a missão dos seres vivos é continuarem a vida para que você sentado num trono de oiro possa olhar-nos e divertir-se à nossa custa e a contar as estrelas do céu, porque se não for assim qual é o sentido de Nascer Crescer Morrer?
Nem sei como começar, Pelo princípio Rapaz pelo princípio, então é assim e nem sei como devo tratar-te, deixa lá o tratamento Rapaz o tratamento não importa o importante é o que tens para me dizer, e tanta coisa que tenho para lhe dize que cruzo os braços e finjo que não acredito em si…

(texto de ficção)

Cadáver suspenso no infinito

Os eletrões dos teus olhos
A trezentos mil quilómetros por segundo
E no buraco negro da minha boca
A matéria agarrada às paredes da garganta

Os eletrões entram no meu buraco negro
E desaparecem como pássaros ao amanhecer
Morrem as estrelas
E da luz acorda o esqueleto da gravidade

E quando olho a estrela que morre
A estrela já morta há milhões de anos…
E se eu já tivesse morrido
E a imagem da minha morte perdida no infinito?

A miúda da t-shirt de alças

Uma tarde destas nunca se esquece, não, nunca, e a t-shirt de alças enrola-se-lhe no corpo quando na janela o som do sol adormece na tarde, ela sorri às frestas da sala e murmura palavras em silêncio, gemidos escancarados quando da rua sobe até ao quarto andar o chamamento de uma gaivota em transe, ele e ela, minúsculas gotinhas de suor os separa, pequeninos pássaros poisados nos plátanos, ele abraça-a e sente a pele dela embebida na t-shirt e a t-shirt com o caminhar dos segundos empapa-se-lhe misturando sorrisos com lábios, misturando boca com nuvens, dos seios semi-nus vêm até ele palavras, vêm até ele sílabas e vogais, e o corpo dela parece estar dentro de um hipercubo, e entre ela e a luz, entre ela e a luz uma finíssima t-shirt de alças baloiçando nas mãos dele.
Um cigarro engasga-se e finge esconder-se na sombra do soalho, do sofá emerge um veleiro à procura de vento, o cigarro perde-se e desaparece na noite, a t-shirt aos poucos emagrece, diminui, e esconde-se junto ao mar, o centro de massa do corpo dela desloca-se, roda nas mãos dele, as mãos dele acariciam as coxas transpiradas dela, no vácuo sente-se o cheiro a musgo que se multiplica no chão, pequeníssimas gotinhas de prazer saltitam num crucifixo pendurado na parede que os olha, da boca dela crescem ondas,
- Amo-te
Da boca dela a palavra amo-te pendura-se no púbis, crescem ondas que brincam com o néon que lhe ilumina os seios que brincam na minha mão, sinto-os como sinto a maré quando estou deitado debaixo de uma mangueira, e à minha volta o capim aleija-me nas costas, da boca dela a palavra amo-te leva-me até Luanda, sento-me no meu triciclo de madeira, e sei que o corpo dela aos poucos mistura-se com o meu, somos apenas um corpo no chão da sala,
- Amo-te
Uma tarde destas nunca se esquece, não, nunca, na Baía de Luanda a noite começa a engordar nos ponteiros do relógio que tenho pendurado na cadeira onde estou sentado, finjo estar acordado, mas por entre as nuvens olho o corpo dela que se esconde no luar, e percebo que também eu, também eu a amo muito…
(texto de ficção)

A fábrica dos desejos

A fábrica dos desejos dentro do peito que liberta pela boca os sonhos da noite, os cortinados dos olhos que se prendem ao sentido proibido da rua, as sandálias de cabedal e os calções que fogem dos mabecos, e as árvores que abraçam o esqueleto em equilíbrio estático na varanda das nuvens,
- Despeço-me da vida com a vida sem vida, alimentava-se a candeia de azeite na surdez da cozinha,
Os móveis na garganta do caruncho que sorriam através das fendas milimétricas da tarde, o calendário na parede em apalpões a uma mulher nua, máquinas agrícolas e industriais limitada, e hoje é dia, ele à procura do número de telefone do anunciante, a mulher questionava-o para que ele queria o número e em sorrisos respondia Para nada!, e continuava Apetece-me conversar com alguém!, a mulher fincava o dentes e com focinho de penico gritava-lhe E eu, não sirvo para conversar?, e ele ignorava-a nos azulejos da cozinha,
- E o que é a vida?, perguntava-se a candeia virada para o calendário, para mim apenas sucessivos números em viagem para o futuro, a voz do calendário na saliva dos minutos,
Está a ouvir-me?, continuava a mulher em gritos, Fala mais baixinho que não sou surdo, ria-se o palerma paralisado na gaja nua do calendário, deixa-me em paz responde-lhe ele, E se te fosses foder?, E fodido já eu estou Natália!, És mesmo um parvalhão…, olha, Vou sair!, A esta hora?, Venho já, vou comprar cigarros!,
- E nunca mais voltou?, e o Carlos explica à namorada que desde aquela noite nunca mias voltou a ver o pai, não sei se está vivo, não sei se morreu, E a tua mãe?, a minha mãe morreu uns anos depois,
A fábrica dos desejos dentro do peito que liberta pela boca os sonhos da noite, os cortinados dos olhos que se prendem ao sentido proibido da rua, e na cozinha a candeia que espera o regresso da sombra dos cigarros, o azeite consumido pelo desejo de uma criança e a gaja nua do calendário envelhecida, o corpo parece um amontoado de silêncios, a pele coberta de espinhos, o sorriso agreste entupido na prótese dentária, e dos seios nasceram-lhe seixos que olham o mar e quando passam os barcos lhe tocam e uma luz se acende nos olhos dela…

(texto de ficção)