domingo, 23 de julho de 2023

Engano

 Visto-me de engano

Passeio-me vestido de engano

Passeiam-me visto de engano

Dentro desta cidade

Também ela

De engano.

 

Visto-me de engano

Escrevo por engano

Adormeço por engano

Nesta cidade que não dorme

De engano

Esta vida

Sem vida

Por engano.

 

 

23/07/2023

sábado, 22 de julho de 2023

Todas as flores

 

Sei lá o que eu faria se ficasse sozinho no mundo…

Talvez logo pela manhã me vestisse de Primavera,

De azul-Primavera,

Depois,

À tarde,

Vendesse uns livros à solidão,

Alguns desenhos ao pôr-do-sol…

Escrevia,

Escrevia versos a todas as flores, homens, mulheres e crianças,

Tomava banho,

Desfazia a barba,

E voava sobre o último silêncio que restou,

 

Sei lá o que eu faria se ficasse sozinho no mundo…

Talvez me disfarçasse de só,

De abelha,

De motor a quatro tempos…

Ou mesmo,

Ou mesmo de Cinderela,

 

Sei lá, eu,

O que faria,

Sei lá eu o que faria se ficasse sozinho no mundo…

Talvez me pintasse de mar,

E me deitasse,

E me deitasse junto a todas as flores,

 

A vivas,

E as mortas.

Todas as flores,

Todas.

 

 

22/07/2023

Cidade de enganos

 Procuro-te nesta cidade de enganos

Procuro-te a cada noite que acorda

A cada noite que dorme

Procuro-te no sorriso das estrelas

Ou nas lágrimas do luar

Procuro-te no infinito

Se ele existe

Que acredito

Não desistir de te procurar

 

Procuro-te nesta cidade de enganos

De tormentos

Procuro-te na primeira luz da manhã

Procuro-te nesta cidade de enganos

E pergunto a esta cidade de enganos

Porquê procurar-te

Se cada vez que te procuro

Uma estrela silencia-se no Universo

 

Procuro-te nesta cidade de enganos

De invisíveis lágrimas

E negros panos

Procuro-te sabendo que no teu olhar habita um pedaço de insónia

Que esconde um poema

Um lindo poema;

Onde te posso procurar

 

Dentro desta cidade de enganos.

 

 

22/07/2023

Poemas do mar

 

Deixei de escrever poemas para o mar

Deixei de desenhar…

Deixei de desenhar para o mar

 

Deixei de ter palavras

Que sempre pertenceram ao mar

Deixei de escrever palavras

Para o mar

Palavras

Que sempre foram do mar

 

Deixei de escrever poemas para o mar

Que sempre pertenceram ao mar

Deixei de ter sono

Que sempre pertenceu à noite

Deixei de escrever palavras

Parvas palavras

Para o mar

 

Deixei de escrever poemas para o mar

Deixei de desenhar…

Para o mar,

 

E mesmo assim,

O mar…

Sei lá onde poisa este meu mar…

Das nuvens cinzentas

Dos poemas de embalar

Das luas e dos tristes silêncios

Que também eles

Sempre foram do mar.

 

 

 

22/07/2023

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Segredos do mar



Os teus lábios de mel

São doces como o mar,

São as estrelas,

São as estrelas e o luar,

São a alfazema,

São o poema,

São a tristeza,

São a alegria

Que brinca, no ar,

 

Os teus lábios de mel

São os silêncios do mar,

São a canção de embalar,

São o foguetão em direcção à lua,

Para depois,

Regressar,

 

Os teus lábios de mel

São os segredos do mar,

São o avião,

São o barco…

São a mão…

Na mão de afagar,

Da mão,

Na mão de sonhar,

 

Os teus lábios de mel

São o esconderijo do mar,

Quando se esconde da multidão…

E a multidão…

Se esconde do mar,

Dos teus lábios de mel…

Doces como o mar,

Uma estrela…

Uma estrelas não se cansa de brilhar.

 

 

 

21/07/2023

Francisco

Oito anos

 Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

Tu dizias-me que já não podias ouvir os pássaros,

Eu levantava-me,

Às vezes,

Às vezes tropeçava num círculo de cansaço, e mandava calar os pássaros,

Ficavas tão feliz, quando deixavas de ouvir os pássaros!

 

Sentava-me, irritava-me, irritava-me ouvir os teus gemidos,

Levanta-me,

Vinha à rua,

Fumava um charro,

Pensava…

Em que pensava eu…

Voltava a entrar, sendo eu ateu, rezava…

Rezava para quando entrasse no quarto onde estavas…

Eu,

Eu não chorasse,

 

E Deus cumpriu.

(Deus é fixe).

 

Por esta altura, conversávamos…

De que conservávamos nós afinal…

Coisas simples,

Falavas do vento,

Dizias-me que para a semana já estarias em casa,

E eu,

Que sim, pois claro,

Sabendo tu que era mentira,

Sabendo eu,

Que não era a verdade;

Mesmo assim, não mentiste.

Menos de uma semana estavas em casa…

 

Oito anos, e conversávamos.

De que conversávamos, pai…

Começo a ficar esquecido,

Quase não me lembro das nossas conversas,

Conversávamos,

Tu embrulhado na morfina,

Eu enganando a tristeza com um charro e dois ou três maços de cigarros…

E lia-te poesia,

Lia-te AL Berto,

E acho que gostavas,

Tu sorris,

Eu sorria,

 

E às vezes,

E às vezes desenhava uma lágrima invisível…

Que apenas eu sabia as suas coordenadas para mais tarde a localizar…

 

Depois,

Depois conversávamos,

De quê, pai,

De que conversávamos nós…

Do tempo,

De nós,

Sei lá, pai,

Conversávamos,

Para te alegrar, sabendo que gostavas de pássaros,

Vestia-me de pássaro,

Desenhava danças esquisitas em teu redor,

Dava-te um beijo…

E escondia-me na sombra das mangueiras.

 

Conversávamos, de quê…

E o quê.

Oito anos, por esta altura, conversávamos.

Eu escrevia-te cartas,

Fingia que estava em Lisboa,

Tu com a pedra que estavas…

Acreditavas,

E sorrias,

Como uma criança sentada num baloiço.

 

E conversávamos, pai, de quê,

O quê.

Conversávamos,

Às vezes,

Às vezes desmaiava,

Mais tarde,

Acordava num outro quarto, numa outra pensão…

E dou conta que não era o teu corpo,

Naquela cama,

Mas sim…

O corpo de uma mulher,

Ela, sela sorria-me,

E tu,

Ausente num outro corpo,

Sorrias, também.

Depois gritava por ajuda,

E percebia que afinal…

Todo o teu silêncio…

Devia-se ao descanso, enquanto a morfina escrevia no teu rosto

O último poema da tarde,

Eu sorria-te,

E tu,

Em silêncio; sonhavas.

 

Acordava a noite em ti,

Dentro de mim, perdi a conta às noites,

Aos dias…

Tanto faz, como diz o AL Berto,

(as calças que me deram hão-de ajustar-se ao meu corpo)

Pura verdade, pai,

E de quê,

Conversávamos nós,

Enquanto eu e tu olhávamos o Mussulo,

Pegavas na minha mão…

E voávamos…

E voávamos, pai.

 

Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

 

Num dos poucos momentos da tua lucidez,

Confessei-te que estava a ler o último livro do Lobo Antunes,

Olhaste-me,

Sorriste-me,

E disseste-me que em breve ficaria maluco,

Depois,

Fechaste os olhos,

Gesticulavas qualquer coisas com as mãos…

E voavas,

Voavas,

Depois,

Depois aterravas num aeródromo qualquer,

Sem vigia,

Próximo do mar;

Pegavas-me na mão…

E confessavas-me que dentro do mar…

Que dentro do mar moram os sonhos.

 

E conversávamos,

De quê,

E o quê,

Talvez…

O pequeno silêncio…

Disfarçado de gente,

Tanta,

Que mente,

Eu mentia-te,

Tu,

Tu mentias-me.

(e éramos tão felizes, dentro daquele quarto)

 

 

 

21/07/2023

Francisco Luís Fontinha

Gaivotas

 Gaivotas tristes,

Tristes num Tejo sem ninguém,

Ausente,

Sem gente,

Gaivotas tristes,

Cacilheiros enjoados,

Às vezes,

Em círculos de sono,

E desaparecem no pôr-do-sol.

 

Gaivotas tristes,

Triste num Tejo sem ninguém,

Que espera o vento,

Que antecipa o regresso da noite,

E da noite erguem-se as primeiras balas de alegria…

Dum Tejo sem ninguém,

Com gaivotas tristes,

Tristes gaivotas,

Perdidas durante o dia,

Na ânsia que um beijo em poesia…

Atravesse o Tejo,

O Tejo sem ninguém,

Ausente,

Sem gente.

 

Gaivotas tristes,

Tristes num Tejo sem ninguém,

Frio e escuro,

Sem estrelas e sem luar,

Gaivotas tristes,

Tristes a gaivotas que não sabem voar.

 

 

 

21/07/2023

Francisco