Por esta altura, conversávamos,
Tu,
Embrulhado na morfina,
Eu,
Eu embrulhado na
tristeza.
Tu mentias-me,
E eu,
E eu mentia-te.
Tirando isso,
Conversávamos,
Tu dizias-me que já não
podias ouvir os pássaros,
Eu levantava-me,
Às vezes,
Às vezes tropeçava num círculo
de cansaço, e mandava calar os pássaros,
Ficavas tão feliz, quando
deixavas de ouvir os pássaros!
Sentava-me, irritava-me,
irritava-me ouvir os teus gemidos,
Levanta-me,
Vinha à rua,
Fumava um charro,
Pensava…
Em que pensava eu…
Voltava a entrar, sendo
eu ateu, rezava…
Rezava para quando
entrasse no quarto onde estavas…
Eu,
Eu não chorasse,
E Deus cumpriu.
(Deus é fixe).
Por esta altura,
conversávamos…
De que conservávamos nós
afinal…
Coisas simples,
Falavas do vento,
Dizias-me que para a
semana já estarias em casa,
E eu,
Que sim, pois claro,
Sabendo tu que era
mentira,
Sabendo eu,
Que não era a verdade;
Mesmo assim, não
mentiste.
Menos de uma semana
estavas em casa…
Oito anos, e
conversávamos.
De que conversávamos, pai…
Começo a ficar esquecido,
Quase não me lembro das
nossas conversas,
Conversávamos,
Tu embrulhado na morfina,
Eu enganando a tristeza
com um charro e dois ou três maços de cigarros…
E lia-te poesia,
Lia-te AL Berto,
E acho que gostavas,
Tu sorris,
Eu sorria,
E às vezes,
E às vezes desenhava uma
lágrima invisível…
Que apenas eu sabia as
suas coordenadas para mais tarde a localizar…
Depois,
Depois conversávamos,
De quê, pai,
De que conversávamos nós…
Do tempo,
De nós,
Sei lá, pai,
Conversávamos,
Para te alegrar, sabendo
que gostavas de pássaros,
Vestia-me de pássaro,
Desenhava danças
esquisitas em teu redor,
Dava-te um beijo…
E escondia-me na sombra
das mangueiras.
Conversávamos, de quê…
E o quê.
Oito anos, por esta
altura, conversávamos.
Eu escrevia-te cartas,
Fingia que estava em
Lisboa,
Tu com a pedra que
estavas…
Acreditavas,
E sorrias,
Como uma criança sentada
num baloiço.
E conversávamos, pai, de
quê,
O quê.
Conversávamos,
Às vezes,
Às vezes desmaiava,
Mais tarde,
Acordava num outro quarto,
numa outra pensão…
E dou conta que não era o
teu corpo,
Naquela cama,
Mas sim…
O corpo de uma mulher,
Ela, sela sorria-me,
E tu,
Ausente num outro corpo,
Sorrias, também.
Depois gritava por ajuda,
E percebia que afinal…
Todo o teu silêncio…
Devia-se ao descanso,
enquanto a morfina escrevia no teu rosto
O último poema da tarde,
Eu sorria-te,
E tu,
Em silêncio; sonhavas.
Acordava a noite em ti,
Dentro de mim, perdi a
conta às noites,
Aos dias…
Tanto faz, como diz o AL
Berto,
(as calças que me deram hão-de
ajustar-se ao meu corpo)
Pura verdade, pai,
E de quê,
Conversávamos nós,
Enquanto eu e tu olhávamos
o Mussulo,
Pegavas na minha mão…
E voávamos…
E voávamos, pai.
Por esta altura, conversávamos,
Tu,
Embrulhado na morfina,
Eu,
Eu embrulhado na
tristeza.
Tu mentias-me,
E eu,
E eu mentia-te.
Tirando isso,
Conversávamos,
Num dos poucos momentos
da tua lucidez,
Confessei-te que estava a
ler o último livro do Lobo Antunes,
Olhaste-me,
Sorriste-me,
E disseste-me que em
breve ficaria maluco,
Depois,
Fechaste os olhos,
Gesticulavas qualquer
coisas com as mãos…
E voavas,
Voavas,
Depois,
Depois aterravas num aeródromo
qualquer,
Sem vigia,
Próximo do mar;
Pegavas-me na mão…
E confessavas-me que
dentro do mar…
Que dentro do mar moram
os sonhos.
E conversávamos,
De quê,
E o quê,
Talvez…
O pequeno silêncio…
Disfarçado de gente,
Tanta,
Que mente,
Eu mentia-te,
Tu,
Tu mentias-me.
(e éramos tão felizes,
dentro daquele quarto)
21/07/2023
Francisco Luís Fontinha