sexta-feira, 21 de julho de 2023

Oito anos

 Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

Tu dizias-me que já não podias ouvir os pássaros,

Eu levantava-me,

Às vezes,

Às vezes tropeçava num círculo de cansaço, e mandava calar os pássaros,

Ficavas tão feliz, quando deixavas de ouvir os pássaros!

 

Sentava-me, irritava-me, irritava-me ouvir os teus gemidos,

Levanta-me,

Vinha à rua,

Fumava um charro,

Pensava…

Em que pensava eu…

Voltava a entrar, sendo eu ateu, rezava…

Rezava para quando entrasse no quarto onde estavas…

Eu,

Eu não chorasse,

 

E Deus cumpriu.

(Deus é fixe).

 

Por esta altura, conversávamos…

De que conservávamos nós afinal…

Coisas simples,

Falavas do vento,

Dizias-me que para a semana já estarias em casa,

E eu,

Que sim, pois claro,

Sabendo tu que era mentira,

Sabendo eu,

Que não era a verdade;

Mesmo assim, não mentiste.

Menos de uma semana estavas em casa…

 

Oito anos, e conversávamos.

De que conversávamos, pai…

Começo a ficar esquecido,

Quase não me lembro das nossas conversas,

Conversávamos,

Tu embrulhado na morfina,

Eu enganando a tristeza com um charro e dois ou três maços de cigarros…

E lia-te poesia,

Lia-te AL Berto,

E acho que gostavas,

Tu sorris,

Eu sorria,

 

E às vezes,

E às vezes desenhava uma lágrima invisível…

Que apenas eu sabia as suas coordenadas para mais tarde a localizar…

 

Depois,

Depois conversávamos,

De quê, pai,

De que conversávamos nós…

Do tempo,

De nós,

Sei lá, pai,

Conversávamos,

Para te alegrar, sabendo que gostavas de pássaros,

Vestia-me de pássaro,

Desenhava danças esquisitas em teu redor,

Dava-te um beijo…

E escondia-me na sombra das mangueiras.

 

Conversávamos, de quê…

E o quê.

Oito anos, por esta altura, conversávamos.

Eu escrevia-te cartas,

Fingia que estava em Lisboa,

Tu com a pedra que estavas…

Acreditavas,

E sorrias,

Como uma criança sentada num baloiço.

 

E conversávamos, pai, de quê,

O quê.

Conversávamos,

Às vezes,

Às vezes desmaiava,

Mais tarde,

Acordava num outro quarto, numa outra pensão…

E dou conta que não era o teu corpo,

Naquela cama,

Mas sim…

O corpo de uma mulher,

Ela, sela sorria-me,

E tu,

Ausente num outro corpo,

Sorrias, também.

Depois gritava por ajuda,

E percebia que afinal…

Todo o teu silêncio…

Devia-se ao descanso, enquanto a morfina escrevia no teu rosto

O último poema da tarde,

Eu sorria-te,

E tu,

Em silêncio; sonhavas.

 

Acordava a noite em ti,

Dentro de mim, perdi a conta às noites,

Aos dias…

Tanto faz, como diz o AL Berto,

(as calças que me deram hão-de ajustar-se ao meu corpo)

Pura verdade, pai,

E de quê,

Conversávamos nós,

Enquanto eu e tu olhávamos o Mussulo,

Pegavas na minha mão…

E voávamos…

E voávamos, pai.

 

Por esta altura, conversávamos,

Tu,

Embrulhado na morfina,

Eu,

Eu embrulhado na tristeza.

Tu mentias-me,

E eu,

E eu mentia-te.

Tirando isso,

Conversávamos,

 

Num dos poucos momentos da tua lucidez,

Confessei-te que estava a ler o último livro do Lobo Antunes,

Olhaste-me,

Sorriste-me,

E disseste-me que em breve ficaria maluco,

Depois,

Fechaste os olhos,

Gesticulavas qualquer coisas com as mãos…

E voavas,

Voavas,

Depois,

Depois aterravas num aeródromo qualquer,

Sem vigia,

Próximo do mar;

Pegavas-me na mão…

E confessavas-me que dentro do mar…

Que dentro do mar moram os sonhos.

 

E conversávamos,

De quê,

E o quê,

Talvez…

O pequeno silêncio…

Disfarçado de gente,

Tanta,

Que mente,

Eu mentia-te,

Tu,

Tu mentias-me.

(e éramos tão felizes, dentro daquele quarto)

 

 

 

21/07/2023

Francisco Luís Fontinha

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