Dilacerado corpo
Que dormes no Oceano de
espuma
Corpo enforcado pelo luar
da madrugada
Sentado nesta pedra fria
e escura
E que no tempo se afunda.
Corpo coitado
Coitado dele…
Coitado do silêncio
E das tristes tardes
junto ao rio
Coitado
Coitado do poeta
E do menino do poeta…
Coitado do menino em
fastio
Perdido nas esplanadas da
insónia.
Corpo cansado
Às voltas
Que não voltam
Das voltas que nascem no
horizonte
Coitado do menino
Do menino do poeta
Coitada da montanha
triste e só…
Coitada… coitada da avó e
da neta.
Corpo dilacerado
Quando se esconde nas
catacumbas de um falso sorriso
Corpo meu
Corpo sem juízo…
Pó
Poeira do meu corpo
Corpo teu…
Do teu que não tenho
O meu próprio corpo.
Duzentos e seis ossos
Alguns gramas de carne
putrefacta
Carne do meu corpo
Do meu corpo
Que corpo?
Que raio de corpo
Precisa desta carne
Poeirenta
Bolorenta
Em decomposição lenta…
Sentado aqui
Descalço ali
Olhando o mar em declínio
Sem barcos
Nem marés
Nem bonés…
Cabeças ao vento
Cabelo prisioneiro das
nuvens encarnadas
Ai que silêncio me escuta
Em pedaços de areia
Em pedaços de cicuta.
Dilacerado corpo
Sem corpo para venda
Palavras
Palavras
De que o meu corpo se
alimenta
E bebe a cicuta
E não se lamenta…
Da tristeza das flores
Do sorriso dos pássaros…
E das abelhas
Que nem são flores
Nem são pássaros
Mas são abelhas em flor.
E chove dentro do meu
corpo
E as janelas do meu corpo
Estão encerradas
São lâminas de saudade…
São lágrimas.
E chove nas tuas mãos
Menina do mar
Menina dos lábios de mel…
E das abelhas
Que nem são flores
Nem são pássaros
Nem papagaios de papel
Coloridos
Que uma mãe construía para
o menino
O menino do poeta
Do poeta menino
Em calções…
Puxando um triciclo com
assento em madeira
E volante de sonhos.
Dilacerado corpo
Este corpo que invento
todas as manhãs
Deste corpo que cuido
quando me deito
Neste corpo onde habitam
tantos outros corpos
E não me queixo das
estrelas
Nem dos barcos de
esferovite…
Corpo em poema
Da cama em poesia
Ao corpo sem corpo
Ao corpo de cada dia.
Depois tenho os gonzos
das portas do meu olhar…
Todas…
Todas dilaceradas
Dilacerado corpo
Dos volantes e das vielas
Porcas e parafusos
Fusos
Sei-te lá que mais exista
dentro deste meu pobre corpo
Depois oiço um pequeno
gemido
Um enorme grito de
revolta
A Terra não se cansa de
girar
O cão do vizinho não pára
de ladrar…
E tudo é pó
E tudo se transformará em
poeira
E o ontem não volta.
Alijó, 18/04/2023
Francisco Luís Fontinha