quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

O bosão de Higgs

 Todo o Universo

Frio

Muito frio e escuro,

 

Deste meu Universo

Que me perco nas avenidas que o luar incendeia

Que me esconde

Quando quero chorar

E me penteia,

 

E tenho vergonha,

 

E tenho medo,

 

E só me apetecia voar…

 

Neste Universo

O Universo que ninguém compreende

Nem entende

Porque esta matéria escura

Fria

Muito fria

E infinita como o infinito amanhecer das tuas mãos

Lhe chamam de Universo

Quando a podiam chamar de solidão,

 

Ou de caixão

Ou de livro de anedotas

Este Universo

Com verso

Sem verso

Com a mão

Cortando-lhe a mão

Enquanto a Terra andas às voltas

Às voltas com o bosão…

Com o bosão de Higgs.

 

 

 

 

Alijó, 05/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Um pedacinho de saudade

 Roubaram-me os dias

Como os catraios ou as catraias

Roubam uma laranja

Do quintal do vizinho,

 

Depois

Depois começaram a roubar-me quase todos os pedaços da noite

Deixando-me apenas um minúsculo pedacinho de noite

Um pedacinho que aproveito para escrever

Estar vivo

E respirar as palavras que vêm do mar,

 

Também me roubaram a alegria

E as estrelas que a minha mãe desenhava no tecto da minha alcofa…

 

Roubaram-me os dias

Como quem rouba uma laranja

E depois

Quando a laranja está na mão da noite

Vem o invisível silêncio

Que com a faca da saudade

Recorta-me em pedaços

Pedacinhos

Muitos pedacinhos…

E fico tal e qual como a noite,

 

E pergunto-me

Para que serve um pedacinho igual ao pedacinho da noite

Quando do pedacinho de mim

O outro pedacinho da noite

Come os sobejantes pedacinhos do meu corpo

Deixando sobre o mar

Todos os outros meus pedacinhos,

 

E se alguém comprasse pedacinhos

Pedacinhos do meu corpo

Vendia-os

Dava-os

Alimentava todos os animais da Terra

Alimentava-os com os pedacinhos de mim,

 

Não sou ganancioso

Não

Nunca o fui…

 

Um pedacinho de qualquer coisa… está bom para mim

Não preciso de mais

E até me contento apenas com um pedacinho de saudade,

 

Um pedacinho apenas.

 

 

 

 

Alijó, 05/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Menina que estás sentada

 

Menina que te sentas junto ao rio

Que tens na mão

Um livro envenenado

Que tens nos olhos uma lágrima de sangue,

 

Menina que estás sentada

E que lês as palavras que semeio

E que beijas as palavras que lanço ao vento,

 

Menina que esperas o mar

Quando o mar está sereno

E calmo como as estrelas da madrugada,

 

Menina que estás sentada

E ergues as mãos para a minha morada

Não tenhas medo

Medo da alvorada…

Não tenhas medo

Medo de estar sentada.

 

 

 

Alijó, 05/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Estrelas que morrem

 

Não tenho pressa

Que as flores cresçam no meu jardim,

 

E enquanto as flores do meu jardim

Crescem

Não crescem

Há uma estrela que morre

Nas mãos de uma criança,

 

Há uma criança com fome

Uma criança que tem nome

Uma criança em lágrimas

Uma criança…

 

Há uma criança que não se importa

Não se importa com as flores do meu jardim

Ou com as estrelas que lhe morrem na mão,

 

Porque enquanto uma criança tem fome

Quero que se fodam as flores do meu jardim…

Ou as estrelas que morrem nas mãos de uma criança.

 

 

Alijó, 05/01/2023

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Os cheiros e as sombras e os sons do Mussulo…

 Encostou a mão na minha face

Deu-me um beijo

E enquanto me olhava

Escondeu-se no capim,

 

Foi assim que a melhor amiga da minha infância de Luanda

Se despediu de mim,

 

Eu e a Fátima brincávamos

E inventávamos coisas

Coisas que apenas as crianças entendem,

´

E tal como ela habita dentro do álbum fotográfico do meu pai

Também eu provavelmente ainda brinco no álbum dos pais dela,

 

Provavelmente a Fátima tem filhos

Tem netos

(ao contrário de mim)

Provavelmente ainda se recordará do menino dos calções

Tal como eu me recordo dela

E quem sabe

Um dia

Numa qualquer rua do Planeta Terra

Encontraremos as sombras e os cheiros e os sons do Mussulo,

 

Porque as pessoas morrem

Mas os cheiros e as sombras e os sons do Mussulo…

Nunca morrerão.

 

 

 

 

 

Alijó, 04/01/2023

Francisco Luís Fontinha

Os barcos da minha vida

 A vida

A minha vida

É uma tela

Uma tela que herdei das mãos de Deus

E que aos poucos

Fui pincelando,

 

Com cores,

Com riscos,

Com olhares

E cheiros,

Com o silêncio do mar,

 

(Deus, criador do céu e da terra, do mar e dos pássaros, das árvores e da paixão, tudo, dizem, Deus criou)

 

E a primeira paixão

De que me lembro

Foi a paixão dos barcos,

Barcos que o meu pai me levava a ver

Todos os fins-de-semana

Ao porto de Luanda,

 

Pequeno que eu era

E amedrontado com todo aquele tamanho

E esplendor

(a minha mão muito agarrada à mão dele)

Deliciava-me

Deliciava-me com os cheiros a Nafta

Deliciava-me com os olhos dos barcos

E com os braços dos barcos

Que quando regressava a casa

Sentava-me debaixo das mangueiras

E sonhava em beijar e abraçar

(todos aqueles barcos),

 

E da tela da minha vida

Que nunca consegui terminar

Porque está sempre em construção

Hoje mais parece um barco

(entre portos e marés, entre o ontem, o hoje e o amanhã)

Um barco que às vezes sorri

Outras

Outras vezes que chora

Um barco sem nome

Como a tela da vida

(porque todos os barcos têm um nome)

E corre calçada abaixo

E corre calçada acima,

 

Lembro-me muito bem

Em criança

De puxar um barco pelas ruas

E rua acima

E rua abaixo

Lá andava eu

O menino que trocou os calções

Por roupas muito pesadas

Por calçado muito pesado

E fartei-me deste mar

E fartei-me desta pobre maré…

 

E voltando à minha vida,

 

A vida

A minha vida

É uma tela

Uma tela que herdei das mãos de Deus

E que aos poucos

Fui pincelando,

 

Algumas vezes

Pincelei-a de alegria

Muitas mais vezes

Pincelei-a de tristeza

Mas como sou daltónico

Não importam as cores da tela da minha vida

(se são de cor alegria ou se são de cor tristeza),

 

(e voltando aos barcos porque a minha vida é pouco interessante)

 

E enquanto os olhava

Nunca imaginava

Nem sonhava

Um dia

Qualquer dia

Brincar dozes dias

Ou dormir doze noites

Nos braços de um barco,

 

Mas brinquei,

E dormi,

E hoje acredito se este enorme paquete tivesse naufragado

Isso sim

Hoje seria o menino dos calções mais alegre de todas as sanzalas de prata,

 

E a minha pobre mãe

Acreditava que Deus estava do nosso lado

Que era nosso aliado,

 

(como ela estava tão enganada)

 

Como ela estava enganada.

 

 

 

 

 

Alijó, 04/01/2023

Francisco Luís Fontinha

O plátano de Alijó

 Vivíamos em cima das árvores. Umas eram baixas e atarracadas, outras, altas e esguias, e um dia quando acordo, manhã cedo, percebi que estava sentado numa cadeira de praia, e esta por sua vez, estava poisada sobre a árvore grande (centenário plátano de Alijó) e sem ajuda, fosse ela qual fosse, era impossível eu descer. E se caminhasse em frente, morria.

Ainda pensei atirar-me do plátano abaixo e em pequenas brincadeiras com o centro de massa do meu corpo, voar até que me estatelasse sobre o paralelepípedo da calçada, talvez fosse a maneira mais fácil de descer, mas em vez disso, gritei pela minha mãe,

Mãe…

Mãe…

Sim filho,

Preciso de descer,

E ela deixando tudo o que estava a fazer, vai na minha direcção, aos poucos, sobe o plátano e quando já estava em cima dele, colocou-me a mão na face, agachou-se sobre mim, pegou-me no colo e trouxe-me até ao rés-do-chão; a estrada.

Foi um processo longo e moroso, mas valeu a pena.

Aprendi a andar, aprendi a comer, aprendi a falar e a dormir e a amar.

Às vezes, muitas vezes, apeteceu-me subir novamente para o plátano centenário ou para cima de outra árvore qualquer, mas graças a Deus, não o fiz;

(Não invoques o nome de Deus, sou herege).

Tenho algumas horas de voo, cruzei o Oceano, andei doze dias sobre o mar, sentei-me, numa qualquer noite, sobre a linha do equador, adormeço estava ainda no hemisfério Sul e quando acordo e me dou conta, bem… já estava no hemisfério Norte.

Chegando aqui, nos primeiros dias, perdi-me numa qualquer rua. Depois comecei a passear barcos pela mão desde a farmácia do hospital até à Gricha, e desta até à farmácia do hospital; subia a rua, descia a rua, às vezes sentava-me em frente à casa dos Noura, quando estava cansado, quando da varanda, a minha mãe

Luisinho, cuidado com os carros.

(olhava-a e percebia que ela estava triste, talvez mais triste de que eu, e hoje penso por que razão a minha mãe se preocupava com os carros em Alijó de 1971; ainda hoje se vêem mais barcos pelas ruas e lixo de que automóveis, mas já sabemos que as mães são muito protectoras com os filhos).

Seis meses depois, fui passear barcos para o bairro do Hospital, casa número quinze, rés-do-chão. Anos mais tarde, eu e os barcos, assentámos arraias na avenida vinte e cinco de Abril, e aí, comecei, muito lentamente, a subir às árvores.

Até que sem perceber, vejo-me em cima do plátano centenário de Alijó, e por lá andei alguns anos.

Anos. Anos demais.

 

 

 

Alijó, 04/01/2023

Francisco Luís Fontinha