domingo, 18 de dezembro de 2022

O Ano da Morte de Ricardo Reis


Projecção do filme "O Ano da Morte de Ricardo Reis"

27 de Dezembro - 21h30

A DORVIR do PCP e oTeatro de Vila Real, promovem a exibição deste filme em sessão integrada nas comemorações do centenário do nascimento de José Saramago. Haverá lugar a intervenções de João Botelho (realizador) e Frederico Neves (membro da DORVIR)

Cartas

 Já ninguém escreve cartas.

Há muito tempo que não recebo cartas

E as poucas que recebo

Ou são pagamentos

Ou notificações,

 

Também deixei de escrever cartas,

Antigamente escrevia-as

Hoje

Hoje não escrevo cartas.

 

E tenho saudades de escrever cartas,

E tenho saudades de receber cartas,

 

Cartas de amor,

Cartas de ódio,

Cartas invisíveis

E visíveis…

 

Cartas,

 

Cartas com destinatário,

Cartas com remetente,

Cartas anónimas,

 

Cartas.

 

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Rio sem nome

 Deixa que as tuas mãos morram

E que o corpo se extinga nas páginas de um livro,

 

Deixa que a noite invente nas estrelas

O sorriso daqueles que partiram.

- O regresso das árvores quando tudo se extinguiu,

Deixa que as tuas mãos

Invadam este caixão de prata

Com duzentos e seis ossos de sono.

 

Deixa que as tuas mãos morram

Na lareira da noite

Enquanto o meu caixão

Dorme nos lábios deste rio sem nome.

 

 

 

 

Alijó, 18/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sábado, 17 de dezembro de 2022

A fogueira

 A noite mata-me

Todas as noites

Um pedacinho do meu corpo morre

Todas as noites

A fogueira que habita dentro de mim

Incendeia as mãos com que escrevo as minhas palavras,

 

E as minhas palavras

Estas palavras,

 

Morrem na fogueira que habita dentro de mim.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Um pouco mais de azul

 Nunca percebi a razão de o meu pai, um dia, em meados dos anos oitenta, oferecer-me um livro de Hubert Reeves, “Um pouco mais de azul”.

Pela capa fiquei fascinado, com uma fotografia do Universo.

Ora “Um pouco mais de azul” é uma viagem sobre Universo e a sua história.

E tantos anos depois, não entendo porque o meu pai, na altura, queria que eu aprendesse um pouco mais sobre a história do Universo e pelas mãos “do poeta do espaço”.

O Universo para mim é infinito, frio e muito escuro. Portanto será difícil ou quase impossível alguém ou algo, que apelidam de Deus, ser o responsável de tamanha beleza.

O Universo e a poesia complementam-se, são infinitos, belos e habita em ambos o fascínio pelo desconhecido.

Depois de o ler, não sei se fiquei com mais dúvidas ou certezas; certamente com mais dúvidas.

De onde viemos. Para onde vamos. Quem somos.

Faz sentido tudo o que nos rodeia?

E não será apenas a função dos seres vivos, nascerem, crescerem e morrerem?

Então para que nascemos?

Nascemos para sofrer?

E se eu pudesse conversar com o primeiro ser vivo que habitou a Terra, será que ele satisfazia todas as minhas dúvidas ou pelo contrário, ainda ficava com mais dúvidas…

Mas o meu pai queria que eu estudasse um pouco mais sobre o Universo, e “Um pouco mais de azul” não me satisfez todas as minhas dúvidas, pelo contrário, aumentou-as.

E hoje percebo que brevemente serei apenas pó.

Um pequeno grão de areia.

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

As finas lágrimas do Inverno

 Sabes pai

O irmão que me deste não gosta de poesia

Não gosta de literatura

Arte

O irmão que me deste

Pertence ao grupo daqueles que não querem ser nada

Percebes pai

Nada.

 

E ultimamente sentia pena

Do Álvaro de Campos

Ou do AL Berto,

 

Mas olha pai

Deixei de ter pena deles

Tenho de me preocupar comigo

E deixar em paz

Em paz o senhor Álvaro de Campos e o coitado do AL Berto.

 

O irmão que me deste

Sabes pai

Detesta Proust

Que lhe leia Proust

E sabes pai

Eu adoro Proust.

 

O irmão que me deste

Passa as noites numa taberna

E fica à espera que regresse o comboio de Santa Apolónia

E sabes pai

O coitado ainda não percebeu

Que o comboio de Santa Apolónia nunca chegará ao destino.

 

E sabes pai

O único destino de verdade

É sem dúvida a morte

Essa sim

Regressa sempre no horário certo.

 

Mas o irmão que me deste

Não quer saber de Proust

Ou da morte

Tão pouco se o comboio sem destino

Regresse

E se regressar

Tanto faz

Será apenas um comboio entre outros.

 

Um comboio estúpido

Um comboio que transporta as finas lágrimas do Inverno

E sabes pai

Ele não sabe

Ele nunca saberá

Que este comboio não existe

Que este comboio nunca existirá…

Tal como os livros de Proust que ele nunca leu

Detesta

E nem quer ouvir falar.

 

Mas sabes pai

Não estou chateado por me dares um irmão

Um irmão que detesta Proust

Que não quer que eu lhe leia Proust,

 

Estou chateado

Muito chateado

Pai

Porque o irmão que me deste é um cretino

Um cretino que nunca será ninguém

Um cretino

Um falhado

Um falhado que não gosta de Proust

Que detesta Proust

E não quer que eu lhe leia Proust.

 

E espero pai

Desejo muito meu querido pai

Que o comboio que vem de Santa Apolónia se estampe contra um lençol de lágrimas

E que morra como morrem os homens.

 

E sim pai

Eu gostava de ser um comboio com partida de Santa Apolónia

E pelo caminho estampar-me contra uma nuvem de sangue

Uma pequena nuvem com odor a naftalina,

 

Depois

Pego “Em busca do tempo perdido”

E sim pai

O cretino do meu irmão vai perceber que Proust

Sim pai

Que Proust morreu esgotado.

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Destino

 Não morras no meu corpo,

Não suportaria mais mortes no meu corpo,

Não morras enquanto o dia é dia,

Enquanto o dia é um tapete de sombra.

 

Não morras no meu corpo,

Porque a morte é uma viagem sem destino,

E acredita que não me apetece viajar…

 

E tão pouco sei o que é o destino.

 

Não me morras,

Não me morras como morreram as minhas árvores,

Os meus pássaros,

E todos os meus barcos,

Não me morras neste corpo em silêncio,

Que o granito que transporto nos ombros

É tão pesado,

Tão pesado…

Que mal consigo voar.

 

E se um dia morreres no meu corpo,

Avisa-me; para que eu saiba que vais morrer.

 

Não. Não morras no meu corpo.

 

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha