sábado, 17 de dezembro de 2022

Corpo sonâmbulo

 Em que rio te escondes

Corpo sonâmbulo das vagabundas noites

Mestre das palavras

Feiticeiro dos dias de neblina,

 

Em que corpo habitas

Cansado menino sem esperança

Melodia das manhãs de Inverno…

Que corpo é este

Que transporto

Que nada me diz

Quando desce a lua sobre o meu cabelo,

 

Não sei em que corpo te escondes

Se tens um corpo para te esconderes,

 

Sonâmbulo amigo

Amigo que procuras as espadas

E te suicidas com elas,

 

E te libertas das canções envenenadas pelo silêncio

Teu corpo

Meu corpo

Menino sem Pátria

Menino das sandálias e dos calções;

Teu corpo

É o meu corpo

E tu

Meu querido corpo sonâmbulo

Abres a mão

Abres a mão e esperas que cada pingo de chuva

Seja apenas uma palavra…

 

Nada mais do que uma palavra

Uma palavra disfarçada de pingo de chuva.

 

 

 

 

Alijó, 17/12/2022

Francisco Luís Fontinha

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A luz

 Meu amor

Esta noite vou à caça de estrelas

Vou pegar algumas em azul

Outras de encarnado sangue

E outras em amarelo invisível,

 

Depois de ter as estrelas na mão

Coloco-as cuidadosamente no teu peito

Pego na tua mão

Pego na tua mão e pincelo os teus lábios de beijos,

 

Mas todas as estrelas que possa caçar

Que podem ser infinitas

É preciso muito mais do que estrelas

Para colocar no teu coração,

 

Meu amor

Talvez agora vá caçar flores

Poemas para te declamar

Quando sentados no chão

Ouvimos um invisível vinil…

E o mar poisa nas nossas mãos,

 

E antes que o invisível vinil se canse de girar,

Apago a luz,

E espero que o dia acorde em ti!

 

 

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

O Universo teu cubo invisível

 Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

Não

Estou cansado

Extremamente cansado

Cansado para me levantar desta cadeira

Andar uns quantos passos atá à cozinha

Erguer a mão direita em direcção ao botão…

E carregar

Com força

Portanto

Esqueçam

Não o faço

 

Depois

Pergunto-me o quão infinito é o Universo

Que se expande

Que não se expande

Não o sei

Uns dizem que sim

Que não

Que um dia o Universo vai começar a contrair

E tudo voltar a ser apenas um pequeno ponto

Do tamanho da cabeça de um alfinete

E recomeçará tudo novamente

 

Se eu pudesse

Se eu pudesse conversar com a primeira pedra a habitar a Terra

Se eu pudesse

Fazia-o

Fazia-o sem pensar duas

Três

Milhões de vezes

Ao cubo

Dentro do cubo

O vazio

As nuvens que às vezes aparecem nos teus olhos

(sabias que os teus olhos são poemas de amor?)

Pegava-lhe na mão

Sentava-me a seu lado

E perguntava-lhe porquê

Provavelmente

A pedra

A primeira pedra

E depois

Talvez ficasse sem jeito

Que emoção

Conversar com a primeira pedra a habitar a Terra…

Vamos tomar um café?

 

Olho o cubo que dorme todas as noites sobre a minha secretária

Olho-o

E pergunto-me se pelo facto de eu ter um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Poisado sobre a secretária

Sou mais ou menos feliz

Se sobre a minha secretária não tivesse esse cubo

Esse cubo pintado de encarnado

Era menos ou mais feliz?

E os milhões de lares

Espalhados por aldeias vilas e cidades

Que não têm um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Sobre a secretária

Na casa de banho

Cozinha

No quarto

Qualquer sítio

Em qualquer lugar

São mais felizes então?

 

Claro que não

 

Depois da primeira pedra

Vem o primeiro primata

A primeira borboleta

(a primeira flor)

A primeira mulher

Depois

O primeiro beijo

O primeiro poema

(e pergunto-me qual terá nascido primeiro: o beijo ou o poema?)

Depois

Depois nasce a primeira cadeira

O primeiro livro

A primeira carícia

A primeira lágrima

Depois

O primeiro livro

Nasce o primeiro livro de poemas

A primeira flor em papel

A primeira lua

E o último luar

 

(Claro que não)

 

A primeira troca de olhares

A primeira Primavera

A primeira paixão

 

(até agora ainda ninguém morreu desde o começo do Universo)

 

E para estar aqui hoje

Agora

Foi necessário nascer o segundo primata

O terceiro primata

O quarto primata

E agora sim

Agora já podemos matar algum ou alguns dos primatas

 

(O primeiro cigarro)

 

(neste momento um dos primatas é preso por excesso de velocidade)

 

Depois

Depois nasce a primeira criança primata

Ouvem-se os primeiros gritos

O primeiro choro

A primeira birra

O primeiro cocó

As primeiras palavras

Os primeiros números

As primeiras brincadeiras

As primeiras palavras ditas

E depois

As escritas

A escola

 

A primeira lareira

Do primeiro abraço

Quando se lê o primeiro poema

E agora sim

O beijo

Os cabelos

Os lábios

As tuas cochas

Os teus olhos quando vês a primeira estrela

A primeira dor

O primeiro desejo

A primeira árvore

 

Os meus primeiros pássaros

E os meus primeiros barcos

 

A primeira noite

A primeira noite dentro do cubo

Do cubo pintado de encarnando

 

(e quando me dizem que sou um falhado

Um perfeito idiota

O coitadinho

O maluquinho…

Eu penso

PORRA

Então não foi o meu espermatozóide

Que entre milhões conseguiu sobreviver?

 

E se não tivesse sido o meu espermatozóide o escolhido?

Se fosse outro…

Eu podia ser mulher

Homem

Mais baixo

Mais gordo

Menos parvo

E menos idiota do que eu sou

Mais simpático

E menos anti-social…

 

E continuo a olhar este parvo

Este parvo cubo

O cubo mais parvalhão que conheci

Desde que me lembro de conhecer coisas

 

(Coisas meu amor

Coisas)

 

O primeiro dia

Do primeiro sol

As primeiras chuvas

O primeiro calor

O último frio do Inverno

Antes do primeiro Verão

 

Depois

Depois meu amor

O meu primeiro machimbombo

A minha primeira cidade

A cidade perdida

Na mão do feio comboio em direcção ao mar

 

Ao mar

Meu amor

O meu primeiro mar

 

Meu mar

O meu primeiro mar

 

(Depois

O primeiro cancro

O segundo cancro)

 

 

Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

 

(Não)

 

Apenas porque estou muito

Muito

Mesmo

Muito cansado para me erguer desta cadeira.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Lindo olhar

 

Pergunto ao vento

Se o vento me leva

Se me leva para os teus braços,

Pergunto ao vento

Se o vento não se cansa

Não se cansa dos meus cansaços.

 

Pergunto ao vento

Se o vento me traz o teu olhar

Quando acorda o amanhecer,

Pergunto ao vento

Se o vento quer ser o mar

O mar que não consigo esquecer.

 

E o vento me diz

Porque não consigo esquecer o teu olhar,

O olhar que o vento me traz,

O teu lindo olhar!

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Biblioteca

 Oito paredes

Uma janela

Nove estantes

Prateleiras

E aproximadamente

Quinhentas mil palavras,

 

(dois compartimentos)

 

Juntamente com as palavras

Fotografias

Esquemas

Gráficos

E dedicatórias,

 

Dedicado a

Feliz Natal de 198…

“Feliz aniversário querido filho Francisco” ou outra merda qualquer

Mais “odeio-te”

Do “amo-te”

Alguns “nunca mais te quero ver”

Felicidades

Boa viagem até ao Sol

E claro

Pequenos poemas que vou escrevendo nos livros que leio

Datas

Números

Alguns rabiscos,

 

Quarenta cachimbos

Relógios

Canetas de tinta permanente

Discos de vinil

CDs

Catálogos e tabelas e outras coisas e tal

Retractos

Abstractos quadros

E muito lixo,

 

Manuscritos dos anos oitenta.

(mais de mil textos e poemas)

 

Quando me sento na secretária

Puxo um cigarro

Engano-o

Acendo-o

E fumo-o

Olho para a janela

O que vejo

Esqueletos

Esqueletos

Muitos esqueletos

Dos que amei

Dos amigos

Digamos que a janela da minha biblioteca

A minha biblioteca

É um cemitério de ossos

Éum pequeno estendal de retractos

A preto e branco

A cores

E ainda outros

Nem são a preto e branco

Mas também não são a cores

Direi que são retractos de ninguém

Anónimos

Anónimas

Pequenos corpos de luz,

 

O que tenho mais eu

Eu

Que vos possa oferecer,

 

Digamos que nada mais.

 

A minha fortuna maior

São caracteres

Milhares de caracteres

Esquemas

Gráficos

Retractos

Cachimbos

Os relógios

Os abstractos quadros

Desenhos

Discos de vinil

CDs,

 

(e muitos livros com muitas equações)

 

E claro

O cemitério de ossos que tenho na janela.

 

E enquanto fumo o cigarro

Questiono-me

(para que serve toda esta merda?)

E se todas as noites me sentasse à lareira

E aos poucos

Fosse semeando na lareira todos estes caracteres

Todos estes cachimbos

As canetas de tinta permanente

E todo o resto

Talvez

Talvez ao fim de quinze dias esteja em paz

E liberto de todos estes pertences

Tralha

Merda

Muita merda,

 

O meu problema maior será como me desfazer do cemitério de ossos;

Parto os vidros da janela?

E será que após partir os vidros da janela

O cemitério de ossos desaparece,

Vai embora?

E se não for embora?

Fico sem janela

E com o cemitério de ossos?

 

O cigarro acaba de desmaiar

Provavelmente

Tensão alta

Ou açúcar no sangue

Fricciono-lhe o rosto

Começa a abrir os olhinhos…

E temos novamente cigarro para mais alguns minutos,

 

Poiso os olhos na prateleira onde dormem

AL Berto

Pacheco

O Lobo Antunes

Cesariny

O Cruzeiro Seixas

E penso

E debato-me

O que fazei quando tudo arde (António Lobo Antunes)

O que fazer com todas nestas cinzas?

Com toda esta merda?

Sim

Merda

Sim

Cinzas

Porque toda a minha vida

Foram cinzas

Noites em claro,

 

Saía ao principio da noite

E regressava de madrugada com um saco repleto de palavras

Depois

Durante o dia

Colocava-as sobre uma folha branca

Agitava um pouco

E passadas algumas horas

Tinha poemas

Tinha textos

Tinha desenhos

E às vezes descuidava-me

E tinha uma grande porcaria

Ficava tudo chamuscado.

 

(nunca fui bom cozinheiro)

 

Tinha o silêncio

Tinha o mar

Tinha barcos

Tinha nada

Tinha rios

Socalcos

Enxadas

Tinha tudo

Tudo

Tudo muito arrumadinho,

 

Agora não sei o que fazer a toda esta porcaria

Não sei se queime tudo

Não sei se dê

Não sei…

 

(a minha preocupação é com a janela)

 

Que farei com todos estes ossos?

 

Dinheiro não será certamente

Porque ninguém compra ossos…

E se comprassem ossos

Já tinha vendido os meus

Não preciso deles.

 

E voltando

Às oito paredes

Uma janela

Nove estantes

Prateleiras

E aproximadamente

Quinhentas mil palavras,

 

(dois compartimentos)

 

E questiono-me se não seria mais feliz

Se eu não tivesse nada disso

Se eu nunca tivesse olhado o mar

Olhado o céu

A lua

O luar

O capim

As chuvas

A geada

Ter nascido às sete e trinta da manhã

Saber o que é um machimbombo

Ter nascido a um Domingo

Tudo isso

Em Janeiro

E o outro

Aquilo

Daquilo

E um dia

Qualquer dia,

 

Nada.

 

Apenas mais um dia.

Mais nada.

De nada.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 15/12/2022

Francisco Luís Fontinha