sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

O Universo teu cubo invisível

 Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

Não

Estou cansado

Extremamente cansado

Cansado para me levantar desta cadeira

Andar uns quantos passos atá à cozinha

Erguer a mão direita em direcção ao botão…

E carregar

Com força

Portanto

Esqueçam

Não o faço

 

Depois

Pergunto-me o quão infinito é o Universo

Que se expande

Que não se expande

Não o sei

Uns dizem que sim

Que não

Que um dia o Universo vai começar a contrair

E tudo voltar a ser apenas um pequeno ponto

Do tamanho da cabeça de um alfinete

E recomeçará tudo novamente

 

Se eu pudesse

Se eu pudesse conversar com a primeira pedra a habitar a Terra

Se eu pudesse

Fazia-o

Fazia-o sem pensar duas

Três

Milhões de vezes

Ao cubo

Dentro do cubo

O vazio

As nuvens que às vezes aparecem nos teus olhos

(sabias que os teus olhos são poemas de amor?)

Pegava-lhe na mão

Sentava-me a seu lado

E perguntava-lhe porquê

Provavelmente

A pedra

A primeira pedra

E depois

Talvez ficasse sem jeito

Que emoção

Conversar com a primeira pedra a habitar a Terra…

Vamos tomar um café?

 

Olho o cubo que dorme todas as noites sobre a minha secretária

Olho-o

E pergunto-me se pelo facto de eu ter um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Poisado sobre a secretária

Sou mais ou menos feliz

Se sobre a minha secretária não tivesse esse cubo

Esse cubo pintado de encarnado

Era menos ou mais feliz?

E os milhões de lares

Espalhados por aldeias vilas e cidades

Que não têm um cubo

Um cubo pintado de encarnado

Sobre a secretária

Na casa de banho

Cozinha

No quarto

Qualquer sítio

Em qualquer lugar

São mais felizes então?

 

Claro que não

 

Depois da primeira pedra

Vem o primeiro primata

A primeira borboleta

(a primeira flor)

A primeira mulher

Depois

O primeiro beijo

O primeiro poema

(e pergunto-me qual terá nascido primeiro: o beijo ou o poema?)

Depois

Depois nasce a primeira cadeira

O primeiro livro

A primeira carícia

A primeira lágrima

Depois

O primeiro livro

Nasce o primeiro livro de poemas

A primeira flor em papel

A primeira lua

E o último luar

 

(Claro que não)

 

A primeira troca de olhares

A primeira Primavera

A primeira paixão

 

(até agora ainda ninguém morreu desde o começo do Universo)

 

E para estar aqui hoje

Agora

Foi necessário nascer o segundo primata

O terceiro primata

O quarto primata

E agora sim

Agora já podemos matar algum ou alguns dos primatas

 

(O primeiro cigarro)

 

(neste momento um dos primatas é preso por excesso de velocidade)

 

Depois

Depois nasce a primeira criança primata

Ouvem-se os primeiros gritos

O primeiro choro

A primeira birra

O primeiro cocó

As primeiras palavras

Os primeiros números

As primeiras brincadeiras

As primeiras palavras ditas

E depois

As escritas

A escola

 

A primeira lareira

Do primeiro abraço

Quando se lê o primeiro poema

E agora sim

O beijo

Os cabelos

Os lábios

As tuas cochas

Os teus olhos quando vês a primeira estrela

A primeira dor

O primeiro desejo

A primeira árvore

 

Os meus primeiros pássaros

E os meus primeiros barcos

 

A primeira noite

A primeira noite dentro do cubo

Do cubo pintado de encarnando

 

(e quando me dizem que sou um falhado

Um perfeito idiota

O coitadinho

O maluquinho…

Eu penso

PORRA

Então não foi o meu espermatozóide

Que entre milhões conseguiu sobreviver?

 

E se não tivesse sido o meu espermatozóide o escolhido?

Se fosse outro…

Eu podia ser mulher

Homem

Mais baixo

Mais gordo

Menos parvo

E menos idiota do que eu sou

Mais simpático

E menos anti-social…

 

E continuo a olhar este parvo

Este parvo cubo

O cubo mais parvalhão que conheci

Desde que me lembro de conhecer coisas

 

(Coisas meu amor

Coisas)

 

O primeiro dia

Do primeiro sol

As primeiras chuvas

O primeiro calor

O último frio do Inverno

Antes do primeiro Verão

 

Depois

Depois meu amor

O meu primeiro machimbombo

A minha primeira cidade

A cidade perdida

Na mão do feio comboio em direcção ao mar

 

Ao mar

Meu amor

O meu primeiro mar

 

Meu mar

O meu primeiro mar

 

(Depois

O primeiro cancro

O segundo cancro)

 

 

Se me pedissem para parar a extinção do Universo

Não o fazia

Não me levantava da cadeira

Deslocar-me à cozinha

E carregar no botão…

Egoísmo?

 

(Não)

 

Apenas porque estou muito

Muito

Mesmo

Muito cansado para me erguer desta cadeira.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Lindo olhar

 

Pergunto ao vento

Se o vento me leva

Se me leva para os teus braços,

Pergunto ao vento

Se o vento não se cansa

Não se cansa dos meus cansaços.

 

Pergunto ao vento

Se o vento me traz o teu olhar

Quando acorda o amanhecer,

Pergunto ao vento

Se o vento quer ser o mar

O mar que não consigo esquecer.

 

E o vento me diz

Porque não consigo esquecer o teu olhar,

O olhar que o vento me traz,

O teu lindo olhar!

 

 

 

Alijó, 16/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Biblioteca

 Oito paredes

Uma janela

Nove estantes

Prateleiras

E aproximadamente

Quinhentas mil palavras,

 

(dois compartimentos)

 

Juntamente com as palavras

Fotografias

Esquemas

Gráficos

E dedicatórias,

 

Dedicado a

Feliz Natal de 198…

“Feliz aniversário querido filho Francisco” ou outra merda qualquer

Mais “odeio-te”

Do “amo-te”

Alguns “nunca mais te quero ver”

Felicidades

Boa viagem até ao Sol

E claro

Pequenos poemas que vou escrevendo nos livros que leio

Datas

Números

Alguns rabiscos,

 

Quarenta cachimbos

Relógios

Canetas de tinta permanente

Discos de vinil

CDs

Catálogos e tabelas e outras coisas e tal

Retractos

Abstractos quadros

E muito lixo,

 

Manuscritos dos anos oitenta.

(mais de mil textos e poemas)

 

Quando me sento na secretária

Puxo um cigarro

Engano-o

Acendo-o

E fumo-o

Olho para a janela

O que vejo

Esqueletos

Esqueletos

Muitos esqueletos

Dos que amei

Dos amigos

Digamos que a janela da minha biblioteca

A minha biblioteca

É um cemitério de ossos

Éum pequeno estendal de retractos

A preto e branco

A cores

E ainda outros

Nem são a preto e branco

Mas também não são a cores

Direi que são retractos de ninguém

Anónimos

Anónimas

Pequenos corpos de luz,

 

O que tenho mais eu

Eu

Que vos possa oferecer,

 

Digamos que nada mais.

 

A minha fortuna maior

São caracteres

Milhares de caracteres

Esquemas

Gráficos

Retractos

Cachimbos

Os relógios

Os abstractos quadros

Desenhos

Discos de vinil

CDs,

 

(e muitos livros com muitas equações)

 

E claro

O cemitério de ossos que tenho na janela.

 

E enquanto fumo o cigarro

Questiono-me

(para que serve toda esta merda?)

E se todas as noites me sentasse à lareira

E aos poucos

Fosse semeando na lareira todos estes caracteres

Todos estes cachimbos

As canetas de tinta permanente

E todo o resto

Talvez

Talvez ao fim de quinze dias esteja em paz

E liberto de todos estes pertences

Tralha

Merda

Muita merda,

 

O meu problema maior será como me desfazer do cemitério de ossos;

Parto os vidros da janela?

E será que após partir os vidros da janela

O cemitério de ossos desaparece,

Vai embora?

E se não for embora?

Fico sem janela

E com o cemitério de ossos?

 

O cigarro acaba de desmaiar

Provavelmente

Tensão alta

Ou açúcar no sangue

Fricciono-lhe o rosto

Começa a abrir os olhinhos…

E temos novamente cigarro para mais alguns minutos,

 

Poiso os olhos na prateleira onde dormem

AL Berto

Pacheco

O Lobo Antunes

Cesariny

O Cruzeiro Seixas

E penso

E debato-me

O que fazei quando tudo arde (António Lobo Antunes)

O que fazer com todas nestas cinzas?

Com toda esta merda?

Sim

Merda

Sim

Cinzas

Porque toda a minha vida

Foram cinzas

Noites em claro,

 

Saía ao principio da noite

E regressava de madrugada com um saco repleto de palavras

Depois

Durante o dia

Colocava-as sobre uma folha branca

Agitava um pouco

E passadas algumas horas

Tinha poemas

Tinha textos

Tinha desenhos

E às vezes descuidava-me

E tinha uma grande porcaria

Ficava tudo chamuscado.

 

(nunca fui bom cozinheiro)

 

Tinha o silêncio

Tinha o mar

Tinha barcos

Tinha nada

Tinha rios

Socalcos

Enxadas

Tinha tudo

Tudo

Tudo muito arrumadinho,

 

Agora não sei o que fazer a toda esta porcaria

Não sei se queime tudo

Não sei se dê

Não sei…

 

(a minha preocupação é com a janela)

 

Que farei com todos estes ossos?

 

Dinheiro não será certamente

Porque ninguém compra ossos…

E se comprassem ossos

Já tinha vendido os meus

Não preciso deles.

 

E voltando

Às oito paredes

Uma janela

Nove estantes

Prateleiras

E aproximadamente

Quinhentas mil palavras,

 

(dois compartimentos)

 

E questiono-me se não seria mais feliz

Se eu não tivesse nada disso

Se eu nunca tivesse olhado o mar

Olhado o céu

A lua

O luar

O capim

As chuvas

A geada

Ter nascido às sete e trinta da manhã

Saber o que é um machimbombo

Ter nascido a um Domingo

Tudo isso

Em Janeiro

E o outro

Aquilo

Daquilo

E um dia

Qualquer dia,

 

Nada.

 

Apenas mais um dia.

Mais nada.

De nada.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 15/12/2022

Francisco Luís Fontinha

Fome

 

Há gente com fome

Fome de pão

O pão que não come

A gente com fome

A fome do coração.

 

Há gente que come

As palavras sem nome

A fome

Da fome

Quando há gente que não come.

 

Há gente sem nome

Com fome

Gente com nome

Que come

O pão da gente com fome.

 

 

 

Alijó, 15/12/2022

Francisco Luís Fontinha

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A equação de Deus

 Às vezes

Penso.

Sim

Penso.

Ao contrário do que muitos possam pensar

Pensarem que eu não penso

Pois enganem-se

Porque eu penso.

 

E olho as flores

E lá está

Estaciono o esqueleto e penso;

E o que penso eu

Pensando que penso

Pensar nas flores;

Bom

Será que todas as flores são belas?

Haverá flores menos belas?

E se eu não gostar de flores,

Serão para mim

Belas

As flores que não sei se são belas

Ou

Ou menos belas…

 

E se eu não gostar de chuva

E se a manhã está abraçada à chuva

Poderei dizer que não vou gostar do dia

Porque o dia tem a manhã

Porque o dia tem chuva

E eu

Que penso

Não gostar de chuva.

 

Odeio a chuva e seus derivados.

 

Voltando às flores

E à chuva

Acredito que a chuva está para as flores

Tal como

O cubo A está para o cubo B

Sendo o cubo A igual ao cubo B (dimensões)

E o cubo A está pintado de branco

E o cubo B está pintado de negro

E penso…

Porque eu penso

Às vezes

(E às vezes tenho de pedir autorização ao neurónio 1

Para dar uma ajudinha ao neurónio 2)

Serão estes dois cubos iguais?

Diferentes?

Ou a diferença reside apenas na cor…

E duas flores da mesma cor

Nos braços de outras duas flores de cor diferente…

Terei cubos

Flores

Cores

Cravos

Rosas

Crisântemos

Não importa

Pois tenho flores.

 

E cubos.

 

Um dia acordei

E nesse dia enquanto pensava

Pensei

O que pensam os outros

De eu pensar

Bom. Nada de especial.

 

E nesse dia que pensei

Pensava qual a possibilidade de eu voar…

Pensei

Pensei

E pensei

E acreditem que se Deus quisesse que eu voasse

Tinha-me feito pássaro

Avião

Nava espacial

Foguetão

Mas não

Deus fez-me humano…

E os humanos não voam

Como voam os pássaros

Como voam (os peixes?)

Será que os peixes voam?

E as árvores?

(essas, meu querido, essas apenas tombam no chão)

 

E enquanto me olhava no espelho

Às vezes

Sim

Às vezes

Porque olho-me tantas vezes no espelho

Como o número de vezes que penso

E se elevar tudo ao cubo

(não o cubo A nem o cubo B)

Obtenho nada

Digamos que

Nem as flores

Nem a chuva

Nem o espelho

Nem o cubo A

Nem o raio que parta o cubo B.

 

Para concluir

Que não penso

Para concluir que não me olho no espelho…

Enfim

Não penso.

 

E um belo dia

Como todos os dias que são belos

Pensei

Pensaste?

Sim

Meu querido

Pensei;

E não subam ao edifício mais alto da vossa aldeia

Não o subam até ao último andar

E…

(aterragem forçada no pavimento) (os humanos não voam)

E pensei

Será que todas as flores são belas?

Mesmo eu não gostando de flores?

Mesmo eu odiando a chuva?

Meu querido

A chuva nada tem a ver com as flores

 

Porque o raio do dia está para o cubo A

Como o cubo B está para um parque de estacionamento.

 

E o cubo B é um grande amontoado de sucata

Corpos

Ossos

E corpos sem ossos

E ossos sem corpos

E chuva sem o dia

E o dia sem flores

E as flores sem a chuva

(raio parta a chuva)

E a chuva sem nada

E o cubo B é um cabrão

Como o são todos os cubos B.

 

E penso

Penso

(porque penso)

Penso que um dia vou provar

Provar de verdade

Que Deus é uma equação matemática

Muito complexa

Não tem braços

Pernas

Mãos

Que Deus não tem sentimentos

Que se está a cagar para todos aqueles que sofrem

Como se estavam a cagar para mim

Todas as equações matemáticas muito complexas que resolvi;

E se Deus é uma equação matemática muito complexa

Então Deus é constituído apenas por números e letras.

(sombras)

(muitas sombras)

 

(poderei concluir que Deus é a palavra, um conjunto de palavras, um poema…, e se as flores gostam de poemas, então as flores gostam de Deus) (lógica, meu querido…, lógica)

 

E novamente penso.

 

Penso.

Penso que uma lareira é bela

Porque me aquece

Porque posso ler ou escrever junto a ela

Porque posso desenhar no teu corpo

E escrever

Escrever que penso

Não pensando

O que penso

No teu corpo;

Digamos que a lareira fica.

 

Depois temos os livros

Amontoados de livros

E novamente

Novamente penso

Os livros ficam

Os livros vão

E o rio desce a calçada nas tuas coxas

E as tuas coxas lêem todos os meus poemas

E os meus poemas

Os parvos

Os menos parvos

Todos eles

(que tal como eu

Não pensam)

E claro

Os livros ficam.

 

E enquanto penso

Se uma flor

Uma simples flor

É bela

Menos bela

Ou assim-assim

Levem

Levem-me as flores.

 

Deixem o cubo B

Esse fica comigo.

 

(levem o cubo A, levem a chuva, levem as flores, levem o dia, levem tudo, não me levem a lareira, não me levem as coxas dela, não me levem a mal…, mas eu, às vezes penso e escrevo cartas sem remetente)

 

E sim,

 

Podem levar também a corda de nylon.

 

 

 

 

 

Alijó, 14/12/2022

Francisco Luís Fontinha