segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Teu nome – Caos

 Nunca lhe dei um nome. Olho-o, suspenso na parede fria e só como todos os meus livros, empilhados em estantes, frias e sós, mas esta pintura que neste momento observo, não tem nome. Não sei quem é o pai, quem é a mãe, tão pouco se gosta de literatura, poesia, música ou de arte; e que nome dar a uma pintura, suspensa numa parede fria e nua e só – como todas as pinturas que faço, frias, nuas e sós.

Irei chamar-lhe Caos.

O Caos nasceu numa tarde qualquer de Verão, como quase todas as minhas pinturas, e ao contrário de mim, que nasci num belo Domingo de Sol de Janeiro e às sete e trinta da manhã, o Caos nasceu numa tarde de Julho ou de Agosto, tanto faz.

Tem olhos verdes, e se o olharmos bem, tem no rosto o secreto mar do deserto. Perdoa-me, mas meu filho serás, como todas as outras minhas pinturas.

Nunca te dei um nome, enquanto te olho, e percebo que estás de braços abertos e estás suspensa nessa parede fria e nua e só, tenho pena da noite que mais tarde te abraçará. E que todas as estrelas se alicercem na tua boca,

E também não sei se tens irmãos.

E todas as paredes são frias e nuas e escuras e sós; e quando regressar a noite, mudarás novamente de nome, e de Caos, quem sabe, passarás a madrugada, quem sabe, passarás a noite, quem sabe, passarás a lua,

Quem o sabe.

As cores da tua pele incendeiam a luz ténue do teu olhar, um comboio de lata emerge da cozinha, e corredor adentro, entra no quarto, e deita-se sobre os lençóis do negro medo onde poisam as minhas palavras. Ele bebe a cicuta dos sonhos, aquela que o levará até à janela onde o mar brinca com a maré, e todos os barcos em papel, alguns embriagados pelo desejo, olham-no, como eu o olho, mas que nunca saberei o seu nome.

Que importa se esta pintura tem nome – e se eu não tivesse nome, certamente escrevia como escrevo, pintava como pinto e amava como amo, então

Quão importante se ele se chama de Caos ou de outra coisa qualquer.

Pintura será. Meu filho será.

E por breves momentos, coloco-me no lugar do Caos;

Conseguirá amar o Caos?

E se uma pintura amar, e se uma pintura tiver dentro de si o desejo?

E se o Caos for um poema disfarçado de pintura?

E se esta pintura, que apelidei de Caos, for um lindo poema de Sol?

E se este lindo poema de Sol for apenas a pintura que não tinha nome, que apelidei de Caos e que está suspensa nessa parede fria e nua e escura e

Com a solidão da noite.

E o homem que deu vida ao Caos, o pai do Caos, será ele um pintor, um poeta ou

Um pequeno silêncio de vento?

Não importa se a noite é escura, não importa se a parede da sala é fria, não importa…

Levanta as mãos, e reza.

Até que o vento seja um pequeno quadrado de luz.

Poderia sentar-me nesta cadeira e em frente ao mar, dar nomes a todas as minhas pinturas, poderia reler todos os meus poemas, mas são tantos que o tempo restante de vida que me resta, não chegaria.

Irei dormir sem saber o teu nome, como não sei o nome das minhas pinturas: mas gosto muito de ti, meu querido Caos.

Depois,

Um fino e frio e escuro silêncio, desenhará um sorriso na parede da tua sala, fria e nua e escura e só.

Uma serpente enrolada nas marés que assombra a janela com retracto para o teu nome; o Caos a quem dei a vida e amo-o como amos todos os meus filhos. As minhas pinturas do nobre deserto entre os parêntesis da insónia.

 

 

 

 

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

Mecânica dos corpos que se desejam

 Em cada milímetro quadrado de silêncio

Que adorna a minha noite

Um mícron quadrado da tua pele

Poisa nos meus lábios,

 

E à velocidade de um minuto/luz

Chegam a mim as palavras

Do mel derramado

Sobre a superfície marítima;

O teu doce mar.

 

E pergunto-me – quanto pesará um grama de paixão?

 

Tanto como um grama de saudade,

Menos do que um grama de desejo,

Talvez mais do que um grama de beijo…

Num grama de liberdade.

 

 

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

O Sol de amar

 Nem sempre temos o sol dentro de nós;

Às vezes, chora,

Outras, sorri,

Às vezes levanta-se da cadeira junto ao mar,

E revolta-se,

 

Às vezes, às vezes, chora,

Às vezes grita,

Às vezes quer ser o vento,

Outras, a chuva,

Às vezes quer voar,

 

Às vezes, às vezes, morrer,

Às vezes o Sol não quer chorar…

Mas de tantas vezes que chora,

Às vezes, às vezes,

Às vezes o Sol quer amar.

 

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

O poema da paixão

 Se eu pudesse, plantava em cada sombra

Uma linda flor.

Se eu pudesse, em cada olhar triste

Semeava o mar e o luar.

Se eu pudesse, em cada sorriso

Semeava um beijo,

E nos lábios da manhã

Desenhava o Sol.

 

Se eu pudesse, não havia frio,

Se eu pudesse, todas as noites

Eram o silêncio embrulhado nas marés sem inferno,

Se eu pudesse, todos os barcos dormiam na minha mão

Como dormem as palavras que lanço ao vento.

 

Se eu pudesse, inventava o poema,

O foguetão sem combustão,

Se eu pudesse, ninguém morria do coração,

De cancro ou de solidão…

 

Se eu pudesse, em Janeiro era Verão,

Trazia o mar para junto da minha janela,

Se eu pudesse, escrevia uma canção,

Se eu pudesse, não havia fome,

E o pão,

E o pão, se eu pudesse, era liberdade,

 

Se eu pudesse…

Se eu pudesse, voava,

Escrevia sobre o mar,

O poema da paixão,

Se eu pudesse, queria novamente ser criança,

Dar-te a mão,

E de mão dada,

Se eu pudesse,

 

Dormia enquanto houvesse madrugada.

 

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

Estrelas de papel

 

Semeio as estrelas de papel

Nas lágrimas dos teus lábios,

E não são beijos,

Porque esses,

Poiso-os cuidadosamente no teu olhar.

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

Lágrimas de Deus

 

Sento-me nesta pedra cinzenta

Olho a montanha enquanto saboreia o prazer

Do último cigarro da manhã

Ao fundo

O rio encurvado nas lágrimas de Deus

 

E percebo que este rio

Que esta montanha

Que este cigarro e que este Deus

Não me pertencem

Nunca me pertenceram

 

 

Alijó, 21/11/2022

Francisco

domingo, 20 de novembro de 2022

O caderno

 Se procurares nos meus olhos

Os finíssimos fios de geada

Que a noite inventa

Não os encontrarás

Pois nos meus olhos apenas habitam palavras

 

Lágrimas em palavras

Vozes

Versos ao pequeno-almoço

O café

As torradas

 

Os cigarros

A tosse dos cigarros

Os cigarros em tosse

Se procurares nos meus olhos

O endereço das cartas que te escrevo

 

Talvez encontres a morte

Que sem sorte

Ou com sorte

Não importa

Escreve em mim os versos da madrugada

 

Tenho medo da fome

Fome do medo

Tenho nas mãos as algemas do silêncio

Que todos os dias se abraçam ao meu corpo

Que se diga

 

Nada de especial

Não sou um gajo bonito ou jeitoso

Um dia disseram-me que tudo era uma questão de cartão

E eu

Construi em cartão uma casa com sótão

 

Uma casa bonita

Agradável

Com janela para o mar

Mas este cartão

Desta casa

Um dia

Ao outro dia

Ardeu como ardem as minhas palavras nos teus lábios

 

E voltando ao meu corpo

Este pedaço de osso anónimo

E não

Não falavam de uma casa em cartão de verdade

 

E talvez quisessem dizer

Que pertenço a um corpo

Mais magro do que gordo

Mais comprido do que magro

Tenho massa

E quando estou em repouso

Sou um pedaço de sucata

Com asas de vidro

 

Em mecânica

Sou um corpo

Imóvel

Que traz às costas os barcos em sofrimento

Os barcos em pedaços de neblina

Quando o sol poisa na tua boca

E de um beijo

Construo

Uma simples máquina de voar

Levita

Sobe e desce

Dorme numa cama de sémen

 

Depois escrevo ao meu filho

Um gajo com poucos milímetros de comprimento

E tantos e tantos trabalhos me deu

Tive de vender palavras na feira da Ladra

Vendi fardamento roubado

Botas

Livros e um capacete metálico

E no final ainda sobraram cinco contos de reis

 

E o gajo queria que eu trouxesse uma velha espingarda

Reflecti

Hesitei

Pensei para que raio eu queria uma velha espingarda

Uma espingarda que disparava beijos

Abraços

E bebia shots de uísque

E comia rebuçados

 

Passava os finais de tarde frente ao Tejo

Não comia

Bebia e fumava

Escrevia num caderno o que me ia na alma

Mas vendo bem as coisas

Eu

Eu nunca tive nem tenho alma

Só se for a alma do Diabo

 

Uma puta reclamava por quinze minutos de sono

Um panfleto da branca

Trocava tudo isso por uma volta ao Sol

Mas acabávamos sempre por adormecer

Na zona escura da lua

 

Traziam-nos a noite

Erguia-se na parede um crucifixo de sangue

Em lágrimas

Com lágrimas

Depois aterrávamos numa qualquer rua da cidade

 

E a cidade come a cidade

E a cidade bebe a cidade

Eu comia a cidade

E a cidade envergonhava-se dos meus alimentos comestíveis

 

Drageias de sono

Na algibeira um punhado de cansaço

E a cidade continuava em pequenos voos

Em direcção a um caderno que nas minhas mãos aos pucos dormia

Sorria

Brincava

E aos poucos…

Morria.

 

 

 

 

 

Alijó, 20/11/2022

Francisco