Voávamos entre a sombra
do desejo e o beijo adormecido. Tínhamos dentro do corpo o silêncio que a noite
depositou junto à praia das areias brancas. Ouvíamos o uivo dos lobos que
regressavam da montanha, olhavam-nos e sentavam-se junto a nós.
Pegava num pequeno livro
de poesia e lia-lhes poemas dispersos, diga-se, apenas os lobos a percebiam. Puxava
de um cigarro embrulhado em solidão e, permitindo aos olhos alguma lubrificação,
pequenas lágrimas de incenso se despregavam do rosto e acabavam por morrer no
pavimento íngreme da eira.
Estava sol. Dentro dela,
sem o saber, crescia um pedacinho de ninguém, uma coisa de milímetros, como se
fosse apenas mais um poema. Havia gaivotas à nossa volta, num dos retractos, aparecia
uma nuvem de pura lã virgem, que em pequeníssimos círculos, se dirigia para o
mar. Talvez depois de acordar, esse minúsculo ser fosse apenas um fio de nylon
esquecido num qualquer sonho, de uma qualquer manhã, sem remetente.
Desciam os pássaros o
musseque. Uma Bedford amarela, puxada por um pequeno cordel, inventava ruelas e
caminhos térreos, logo que depois, aparecia o velho Alberto e, nunca dando o ar
da sua graça, lamentava-se da poeira causada pela mesma. O sonho, condutor da
dita Bedford amarela, nunca se cansava do árduo trabalho, e de vez em quando,
num pequeno caderninho, apontava cada silêncio que lhe aparecesse pelo caminho.
Eram chuvas sem medida.
Chegava a casa e, sobre
um pedaço de ferro e zinco, um menino esperava-o; e todos os dias, ao final do
dia, o menino recebia o prometido beijo, diga-se que, nunca era igual; o de
ontem não é igual ao de hoje e, o de hoje jamais será igual ao de amanhã. Há quem
lhe chame de amor, mas o menino, chamava aos beijos de: pedacinhos de insónia,
camuflada pelo perfume das acácias.
Pela manhã, erguiam-se
todos os pássaros e acordavam todas as flores, dos pequenos charcos que
restavam da tempestade anterior, poucos ou nenhuns já existiam; quase todos
eles, mortos.
Voávamos entre a sombra
do desejo e o beijo adormecido e, acreditávamos que o dia seguinte, aquele que
ainda não existia, certamente ia ser melhor do dia que estava prestes a
terminar. E assim, aprendi a enganar os dias, e ainda hoje o faço, até que um
punhado de flores tombem sobre o meu corpo e, uma gaivota voe em direcção ao
mar.
Eis o teu retracto.
Eis a tua morada.
Porque eram chuvas sem
medida.
Alijó, 06/02/2022
Francisco Luís Fontinha