Uma sílaba de silêncio
desce a calçada, do outro lado da rua, em frente ao mar, dorme a saudade
abraçada aos peixes inventados por um miúdo, apenas retractei os descosidos
calções, porque quanto à restante vestimenta, nada mais a acrescentar, talvez uns
sapatos rotos ou uma camisa descolorida, que para quem como eu, não sabe as
cores, é indiferente.
Quando eu tinha a idade
deste miúdo, construí um pássaro em cartão prensado. Passei três dias e três
noites debaixo de uma mangueira, árduo trabalho para uma criança da minha idade
e, depois de pronto, libertei-o; ao contrário de Ícaro, a minha obra de arte
nem sequer conseguiu atravessar o musseque, despenhando-se junto a um pequeno
charco de saudade. Mais tarde, percebi que precisava de aulas de Física, Matemática
e Aerodinâmica.
Hoje, passo os dias a
desenhar pássaros num pequeno caderno adquirido em Paris, no Louvre. Os pássaros
são poemas envenenados pela tempestade, são pequenos silêncios na madrugada,
mesmo assim, sabendo que após os ter desenhado eles levantam-se e vão para
muito longe, é um dos meus prazeres; dar vida a rabiscos.
Deitava-me sobre a terra
húmida. Olhava as estrelas e não percebia que o Universo é infinito, ou talvez
não o seja, ou talvez quase finito, mas sabia que os pássaros que hoje desenho
e as estrelas que olhava em menino, dormiam juntos.
Da terra, aos poucos,
começaram a emergir pequenas bolas de fogo. Os meus pássaros, os primeiros que desenhei,
começaram a voar em direcção ao mar. Fui ao galinheiro e libertei todas as
pombas e galinhas, acabando por salvá-los da fogueira enviada por Deus: os
pássaros, esses, arderam um pouco mais tarde. Cinzas que ainda hoje brincam nas
ruas de uma cidade morta, desejosa por que acorde a madrugada.
Um dia acordará a
madrugada e os meus pássaros serão livres como as flores que a minha mãe tinha
no jardim. Como todos nós, deveríamos ser livres.
Ao pássaro que acabei de
desenhar, vou apelidá-lo de “menino dos calções”.
Alijó, 03/02/2022
Francisco Luís Fontinha