quarta-feira, 28 de março de 2012

Ramo de orquídeas

Espero que a noite me leve
E do meu corpo construa um ramo de orquídeas
Espero
Espero pacientemente pelo silêncio das palavras
E que tudo em mim cesse
E que tudo em mim morra

Antes de acordar o dia.

terça-feira, 27 de março de 2012

O cordel de vidro

Vivo desesperadamente sobre um cordel de vidro, oiço o acordar das noites e para me distrair, e para me distrair faço desenhos na sombra da amoreira que habita no quintal do senhor Agripino, coitado
- Todas as janelas se cerram As ultimas palavras da tia Adosinda antes de embarcar para o jardim das camélias adormecidas,
Coitado, sempre agachado sobre os anzóis da tarde, e do outro lado da rua a voz esganiçada da empregada do estabelecimento comercial onde pedaços de plástico cobrem solitariamente a madeira encardida das mesas, é noite, de cigarro no beiço o senhor Agripino afoga a infância em vinho tinto, e a empregada histérica
- Moelas Bolinhos de Bacalhau Orelheira e Chouriço assado,
E a empregada histérica abraçada ao fogão de lenha, e a empregada histérica matutando como conseguir chegar a casa depois de um dia a aturar embriagados e putas, e paneleiros, e o filho doente e o marido a coçar os testículos no granito da rua,
- Recebo um telegrama Informamos vossa excelência que acaba de ser condecorado pelo rei da Babilónia pelos serviços prestados enquanto arrumador de automóveis,
Penso
. Estou fodido,
Penso Lá vou ter de vestir o fato e colocar a gravata com pintinhas encarnadas e calçar os sapos pontiagudos, e eu, e eu sempre odiei todas essas coisas, e até já pedi à minha querida mãezinha Não Não quero fato, Não Não quero gravata, Não Não quero sacerdote, por favor…
Missa? Não Não.
(quero que o meu funeral seja como o do Beethoven)
Coitado do senhor Agripino Quando chegou ao cemitério apenas o acompanhava o cão
- Imagino-me a chegar ao cemitério na companhia dos meus dois fiéis amigos, o REX e o NOQUI, Mas não posso levar fato, Mas não posso levar gravata, Mas não posso levar sapatos pontiagudos…
E o cão do senhor Beethoven o único com paciência para acompanhar o dono ao seu último destino
- Sim tia Adosinda Não se preocupe que no jardim das camélias não falta de nada, Veja lá que até já têm bolinhas de sabão e acácias em flor,
Então está bem Meu filho,
E o seu último destino foi precisamente a ponte invisível que brinca sobre o rio da fantasia, e quando dou por ela, e quando dou por ela oiço a voz esganiçada da empregada a suicidar-se sobre as rochas doentes da noite,
- Ai,
Foi-se entre os limos da preguiça, Agripino chorava, eu, eu dentro de uma caixa de madeira embrulhado num lençol azul bordado pela minha mãezinha muito antes de eu ter nascido, muito antes de o meu pai colocar brilhantina no cabelo e passear-se de lambreta pelas ruas de Luanda,
- Que saudades da velha lambreta Quando o meu cabelo parecia o mar que comia a noite, o mesmo mar que comeu todos os barcos, o mesmo mar que me comeu…
Vivo desesperadamente sobre um cordel de vidro, oiço o acordar das noites e para me distrair, e para me distrair invento histórias, e para me distrair
- Era tão boa menina a piquena do estabelecimento comercial,
E para me distrair oiço o AL Berto, e é tão doce a sua voz, e oiço e oiço…, e porra
- “Se disser mar em voz alta o mar entra pela janela”,
E porra que não me canso de olhar para a janela e não vejo o mar a entrar, e deixei de ver os barcos a serem comidos pelo mar, e deixei de ser comido pelo mar,
- Morri?,
Oiço a voz dela espreguiçar-se sobre as rochas encharcadas de dedos estilhaçados de incenso e mel,
- Morri,
Quando as abelhas deixaram de me picar.

(texto de ficção)

Partilhar

Acreditava que a honestidade e a sinceridade eram uma mais-valia do ser humano; estava completamente errado.
Partilhar o que fui e o que sou sempre me custou muito caro em alguns momentos da minha vida, e acabo de aprender que nunca, que nunca devemos partilhar com os outos o que fomos e o que somos.
E se algum dia voltar a amar, nunca, nunca partilharei o que fui e o que sou.

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Sílabas assassinas

Há sílabas assassinas
Nas palavras que escrevo
E percebo que morro
Abraçado às vogais
Olho os carris presos à insónia
E sei que uma lagarta de aço
Em galope se aproxima
O meu dilema
Deitar-me pacientemente sobre os carris…
Ou
Ou subir a montanha
Mastigando cigarros invisíveis

segunda-feira, 26 de março de 2012

Ele não sabe chorar

Evaporam-se as estrelas na algibeira da dor, um corpo transparente mergulha na superfície da lua, ouvem-se lágrimas no pavimento ensanguentado de livros e pedacinhos de tela,
- Não sei chorar
Ouvem-se todos os silêncios imaginários e dentro de mim um penhasco de rocha em decomposição, o cheiro intenso a carne embebida nos lençóis de sémen, evaporam-se as estrelas na algibeira da dor,
- Porque fui construído em aço inoxidável numa cidade invisível antes de terminar o dia, oiço as palavras argamassadas de sangue poisadas na ardósia da escola, e sentado debaixo de um pinheiro doente, e sentado debaixo de um pinheiro doente dou-me conta que a primavera não existe, dou-me conta que todas as árvores são parvas, e eu, e eu apenas espero pela chegada da noite,
As flores murcham e uma abelha rouba o sol e a noite ficou eterna, e a noite tem os seus encantos quando todas as luzes se evaporam como as estrelas
- Nunca soube o que é o amor,
Estou longe e todas as estrelas rangem nas mãos do orvalho quando os pedaços de mar entram pela casa e agachados junto ao rodapé, um crucifixo, um crucifixo chora nas fendas da alvenaria,
- Quem sou Pergunta-se ele quando vê uma rocha de xisto no espelho estilhaçado que vive no quarto escuro onde se esconde o mar junto ao rodapé, Não sei chorar, e sei que o AL Berto, Algures…, e sei que o AL Berto algures me olha e aproxima-se dos meus braços,
- Um simples abraço, Pensava eu,
Nunca soube o que é o amor, nunca soube o que é a poesia, e pagava, e pagava para não saber ler, e pagava para não saber escrever,
- Que feliz, Que feliz se todo o alfabeto fosse para mim como as joias de ouro e o dinheiro, Merda amarela…
Um vazio infinitamente azul nas paredes do meu quarto, Quem sou Pergunto-me quando vejo uma rocha de xisto no espelho estilhaçado que vive no quarto escuro onde se esconde o mar junto ao rodapé, Ele não sabe chorar, e o AL Berto, Algures…, e o AL Berto algures olha-o, aproxima-se e abraça-o,
- Evaporam-se as estrelas na algibeira da dor
Antes de terem roubado o sol,
O meu corpo transparente mergulha na superfície da lua, cerro hermeticamente os olhos, e, cerro hermeticamente os olhos e dou-me conta que debaixo do pinheiro doente uma criança brinca com os ponteiros de um rabugento relógio, e a tarde, e as estrelas, e tudo evapora-se na algibeira da dor…
- Não sei chorar porque fui construído em aço inoxidável numa cidade invisível antes de terminar o dia.

(texto de ficção)

Não chores

Não chores
Não
Porque…
Porque eu…
Porque eu não valho uma lágrima
Um simples olhar
Ou apenas um sorriso

Não chores
Não.