foto: A&M ART and Photos
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Para que servem as pontes, se eu, não as consigo
atravessar, porque é-me proibido fazê-lo, por decreto, por desejo,
pelas vertigens do medo, sento-me junto à margem do rio e imagino-me
a atravessar a ponte para o outro lado, ignoro-me, finjo-me
adormecido, talvez assim consiga perder a tristeza e acreditar que do
outro lado, me esperam, espera, o meu regresso ao principio infinito
das melancolias perdidas entre paredes, vermelhas, paredes, azuis,
paredes... ai, paredes verdes, como as da cela onde estive até hoje
enclausurado,
Sinto-me voar sobre as ponte que atravessa o rio,
sinto-me mergulhar nas tuas coxas como se elas, as tuas coxas, fossem
um montículo de palha, de barriga para o ar, olhava-te os buracos
que o tempo provocou nas telhas do palheiro, o teu palheiro, visto
seres um pequeno montículo de palha, o meu corpo ficava encharcado
de praganas, picavam-me, sinto-a, a maldita comichão, mas...
compensa acariciar a tua pele de neblina em pedaços silêncios, mas
compensa, sempre, mas compensa-me ficar aqui, e esperar que a ponte
me venha buscar, e pegue na minha mão, como tu o fazias, não
propriamente, mas imaginavas fazê-lo quando me convidavas para te
abraçar perto dos arbustos do jardim em Belém, ao fundo o CCB,
entrávamos, tomávamos café, e comprávamos livros, livros
que hoje pego neles e me fazem recordar-te no tal
palheiro imaginário contigo travestida de montículo de palha...
Livros, malditos de ti os livros oferecidos pelos
olhos amargurados que o dia transportava para um quatro de hotel,
havia uma cama, montículos de palha, havia um tecto, não como o
teu, mas liso, areado liso pintado de branco, como o céu em dias de
chuva embriagadas todas as janelas da cidade, abria-as e puxava de um
cigarro para te saborear e para te chatear e para me distrair... que
horas depois, partiria e te ia deixar
sempre imaginando que seria a última vez de mim
dentro de ti,
Sempre inventando palavras para descrever os
montículos de palha em que tu te transformavas, sem o saberes,
apenas eu, quando te alisava a pele, percebia-se, apercebia-me que
também tu receavas a partida, também tu encontravas formas
distintas de adiar o inadiável, não fumavas tu, mas deixas-me
adormecer nos teus braços de selva fazendo-me acreditar que havia
sempre um outro dia, num outro mês, numa outra cidade, fazias-me
acreditar que havia um outro hotel, com uma outra cama, num qualquer
palheiro, não propriamente o teu, um outro, um outro qualquer, não
importava, não nos importavam se havia semanas de quatro dias, ou se
o dia tinha treze horas, até porque
tínhamos, lembras-te?
Deitamos fora os relógios de pulso, e rasgamos os
calendários e as agendas, deitamos fora o ano de dois mil e quatro,
e quando me olhava no espelho da tua testa franzina... via-me de
pássaro a saltar sobre as árvores perdidas pelas ruas que íamos
deixando abandonadas,
havia sempre um rua para nos acolher,
Sempre,
e penso, não em ti nem nos montículos de palha
seca como tu quando te transformavas em desejo, e penso, penso porque
tive medo de atravessar a ponte e recusei-me encontrar-te do outro
lado do Oceano, algures entre a terra e o mar e a lua, algures numa
ilha deserta, sem ninguém, algures... por aí disfarçado de paquete
galgando searas e montanhas, e sempre
Sempre acreditando que um dia perdia o medo de
atravessar uma simples ponte,
e não consigo,
Sentávamos-nos na esplanada do CCB e víamos
adormecer Lisboa...
Tão lindo, e tão belo, quando te vestias de
montículo de palha, e eu, e eu acariciava os teus dóceis venenos
que escondias entre os dedos de alga salgada.
(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha