domingo, 5 de maio de 2013

Wotan`s Farewell and Magic Fire Music

foto: A&M ART and Photos

Para que servem as pontes, se eu, não as consigo atravessar, porque é-me proibido fazê-lo, por decreto, por desejo, pelas vertigens do medo, sento-me junto à margem do rio e imagino-me a atravessar a ponte para o outro lado, ignoro-me, finjo-me adormecido, talvez assim consiga perder a tristeza e acreditar que do outro lado, me esperam, espera, o meu regresso ao principio infinito das melancolias perdidas entre paredes, vermelhas, paredes, azuis, paredes... ai, paredes verdes, como as da cela onde estive até hoje enclausurado,
(escrevo e oiço Hans Hotter "Wotan`s Farewell and Magic Fire Music" Die Walküre)
Sinto-me voar sobre as ponte que atravessa o rio, sinto-me mergulhar nas tuas coxas como se elas, as tuas coxas, fossem um montículo de palha, de barriga para o ar, olhava-te os buracos que o tempo provocou nas telhas do palheiro, o teu palheiro, visto seres um pequeno montículo de palha, o meu corpo ficava encharcado de praganas, picavam-me, sinto-a, a maldita comichão, mas... compensa acariciar a tua pele de neblina em pedaços silêncios, mas compensa, sempre, mas compensa-me ficar aqui, e esperar que a ponte me venha buscar, e pegue na minha mão, como tu o fazias, não propriamente, mas imaginavas fazê-lo quando me convidavas para te abraçar perto dos arbustos do jardim em Belém, ao fundo o CCB, entrávamos, tomávamos café, e comprávamos livros, livros
que hoje pego neles e me fazem recordar-te no tal palheiro imaginário contigo travestida de montículo de palha...
(escrevo e oiço Hans Hotter "Wotan`s Farewell and Magic Fire Music" Die Walküre)
Livros, malditos de ti os livros oferecidos pelos olhos amargurados que o dia transportava para um quatro de hotel, havia uma cama, montículos de palha, havia um tecto, não como o teu, mas liso, areado liso pintado de branco, como o céu em dias de chuva embriagadas todas as janelas da cidade, abria-as e puxava de um cigarro para te saborear e para te chatear e para me distrair... que horas depois, partiria e te ia deixar
sempre imaginando que seria a última vez de mim dentro de ti,
Sempre inventando palavras para descrever os montículos de palha em que tu te transformavas, sem o saberes, apenas eu, quando te alisava a pele, percebia-se, apercebia-me que também tu receavas a partida, também tu encontravas formas distintas de adiar o inadiável, não fumavas tu, mas deixas-me adormecer nos teus braços de selva fazendo-me acreditar que havia sempre um outro dia, num outro mês, numa outra cidade, fazias-me acreditar que havia um outro hotel, com uma outra cama, num qualquer palheiro, não propriamente o teu, um outro, um outro qualquer, não importava, não nos importavam se havia semanas de quatro dias, ou se o dia tinha treze horas, até porque
tínhamos, lembras-te?
Deitamos fora os relógios de pulso, e rasgamos os calendários e as agendas, deitamos fora o ano de dois mil e quatro, e quando me olhava no espelho da tua testa franzina... via-me de pássaro a saltar sobre as árvores perdidas pelas ruas que íamos deixando abandonadas,
havia sempre um rua para nos acolher,
Sempre,
(escrevo e oiço Hans Hotter "Wotan`s Farewell and Magic Fire Music" Die Walküre)
e penso, não em ti nem nos montículos de palha seca como tu quando te transformavas em desejo, e penso, penso porque tive medo de atravessar a ponte e recusei-me encontrar-te do outro lado do Oceano, algures entre a terra e o mar e a lua, algures numa ilha deserta, sem ninguém, algures... por aí disfarçado de paquete galgando searas e montanhas, e sempre
Sempre acreditando que um dia perdia o medo de atravessar uma simples ponte,
e não consigo,
Sentávamos-nos na esplanada do CCB e víamos adormecer Lisboa...
Tão lindo, e tão belo, quando te vestias de montículo de palha, e eu, e eu acariciava os teus dóceis venenos que escondias entre os dedos de alga salgada.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Os castelos de sal

foto: A&M ART and Photos

Percebia-te infindável pelos teus olhos de maré luar
escondias-te das minhas mãos e da minha pele rasurada por uma caneta de tinta permanente
percebia-se que em ti viviam estrelas de madeira
e perfumes como caixas de música
havia em ti uma janelinha de amor
e um pedacinho de suor quando descia a noite das árvores adormecidas,

Censurada
tu habitavas como eu em mim entre abelhas de aço
e pequenos grãos de areia que o mar escondia de nós
tínhamos o mel das noites quando adormeciam os cobertores da dor
sempre que tu e sempre que eu e sempre... apenas vivíamos percebendo-se pelas linhas de giz
que o vento um dia vinha procurar-te entre os destroços dos vidros estilhaçados,

Percebia-te infindável... maré luar
e mesmo assim subi à árvore dos silêncios para trazer-te do sonambulismo desejo
onde vivias pensando que de mim havia luzes coloridas como te tinhas habituado à cidade...
dos sonhos proibidos e inventados e imaginados
porque viviam nas caixas de música
os eternos poemas do homem encapuçado pela noite dos castelos de sal.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Espelho dos sonhos

foto: A&M ART and Photos

Dizem que me inventaram numa noite de espinhos
quando dormia o sono
e todos os cheiros do teu corpo
deambulavam entre paredes de gesso
e pequenos quadrados de vidro
que a insónia lhes pegava com a mão
e os acariciava num espaço vazio
penumbro,

E fino como as asas dos anjos de brincar...
estou a falar da janela dos sonhos
e do espelho da saudade
onde me miro todos os dias ao acordar
e vejo-me crescer como crescem as ervas debaixo das lâminas de papel,

E vejo-me voar sobre as pétalas encarnadas da tristeza
dizem-me que fui inventada
pela mão de uma nuvem cinzenta
quando ainda existiam nuvens cinzentas na planície dos malignos esconderijos da paixão,

Hoje sou poeira como cigarros num quarto de vidro
a que alguns chamam de cinzeiro
outros delírios meus enquanto não me absorves e te alimentas de mim
dizem que fui inventada por ti
e aqui estou
esperando pelas tuas mandíbulas azuis que vivem dentro do medo,

Esperando pelas tuas mãos de cedro
que trazes nos olhos e das estrelas vadias...
os fins de tarde entalados no Tejo depois de amarelos peixes esquisitos
abraçarem-se-me e levarem-me antes de regressares para me resgatares do inferno
sentido que o amor deixa impregnado nas roupas minha pele...

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

Em destaque no Sapo Angola
Blogue Cachimbo de Água

sábado, 4 de maio de 2013

Quando mergulhávamos no cacimbo

foto: A&M ART and Photos

Perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar
porquê
Perdia-te, e perco, nasci perdido, nasci dentro de um mês explícito, também ele, perdido, perdido, era verão,
em Janeiro, verão
Precisamente, em Janeiro, verão, perdia-te, comei a perder-te já dentro da maternidade, depois, depois no baptismo, e parece que caíram todos os santos quando me viram, e a Igreja da Nossa Senhora da Conceição, toda ela, por mim, em lágrimas,
e por vinte escudos,
Nada,
ninguém?
A terra, o pavimento térreo, pequenas janelas, pedacinhos de luz, entre o branco e o negro, circunferências de corpos, incluindo, o teu, o dela, o dele, de lábios em triângulos, de bocas em cubos, ou... ai as saudades dos hipercubos, das lareiras em flor, da Ajuda subindo a Calçada, descendo cordas de sombra, comendo sandes rápidas depois de voar a tarde sobre a ponte com acesso ao teu púbis de mel, a outra cidade em ti, e de ti, as ruas resumidas a pequenos grupos de palavras, simples palavras, pequenas canções, melodias que eu ouvia quando te sentavas sobre o meu ventre descarnado, sem folhas, suspenso num paralelo de vidro
ninguém e nada, entre nós como Dezembro depois da madrugada,
Escrevia Janeiro e debaixo do Sol tórrido entranhavam-se-me os finos arames que seguravam o tecto das estrelas onde dormia uma tenda, um enorme oleado, por baixo, uma longa estrutura metálica
era o circo
Homens e mulheres e crianças, e palhaços, e cães amestrados, e trapezistas, malabaristas e eu como ninguém, sentado num banco, em madeira apodrecida, contava eu, cada buraco preenchido pelo bicho da madeira, quadrados, círculos de corpos, o teu, o meu, o dela e o dele, os nossos transformavam-se em madeixas coloridas, em pequenas sandálias de couro, entre calções e saias de chita, crianças que inventavam espectáculos, o público emergia, crescia, e depois
fugiam de nós,
Como hoje, ontem, e depois havia a cama de pregos onde o conceituado artista plástico, escritor e poeta, e zé ninguém, eu, ou outro igual, se deitava, adormecia, enquanto
gosto dela, assim, semi-deitada, com as pernas poisadas sobre a terra doirada, gosto dela assim, encurvada, quase nua, quase silenciosa, quase emagrecida nos poucos grãos de areia que o mar deixa nos circunflexos corpos com asas, com barbatanas, como tu, como nós,
E
(era o circo, e perdia constantemente, as coisas boas da vida, perdia relógios, perdia calendários, perdido eu, perdia-te sempre como perco as gaivotas de Maio, um barco indefinido, sombrio, no domingo, não estou, fui, como ela, fui e não regressei e não vou regressar...)
enquanto tu semi-nua, dizias-me com pequenos traços no chão agreste da terra adormecida que os meus olhos mudavam de cor, conforme os dias, as horas, as semanas, em Janeiro, em pelo verão
Verdes,
em Agosto, quando mergulhávamos no cacimbo, pareciam âncoras de cacilheiros esquecidos no Tejo, e no entanto, no meu cadastro
(Cento e setenta e cinco centímetros, branco ou caucasiano, olhos verdes – Verdes? - e foi visto pela última vez na zona do Roque Santeiro, vestia calças de ganga e t-shirt branca com pequenas formas geométricas estampadas no rosto)
verdes, verdes, verdes... como as ervas,
E ele não regressou dos olivais de Outubro, à volta de mim, pedaços de luz em decomposição, e esperava pelo comboio das dezanove horas, abria a porta, espreitava
às voltas, em círculos, como serpentes enfeitadas com veneno imaginário, como tu, imaginavas-me na aula de geometria descritiva, ou em termodinâmica... ou em mecânica dos materiais, e pelos vistos, eu, sem tu o saberes, há muito tinha desaparecido...
O comboio partia, e ninguém tinha poisado o pé sobre a plataforma em cimento sonífero como as plantas do teu Outono, ao contrário do meu, e ninguém a poisar um saco, uma simples mala, nada, e depois de três apitos fortíssimos, ela lá ia, lá ia até encontrar um poiso com olhos verdes, como os teus, como os teus, esses braços... que nunca abracei.

(ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha