Uma fresta da noite copia-se e cola-se no branco
papel com pontos de suor, chamavas-me parvalhão, estúpido, ou
Paspalho?
Nunca me interessaram as alcunhas, porque são
apenas palavras, e com o vento, elas, voam como voaram as gaivotas do
teu curto cabelo nas sombras do Tejo, nos jardins uma fina camada de
relvas onde nos deitávamos, e olhávamos o céu nocturno das mãos
entrelaçadas, ouvíamos
Paspalho, eu?
Ouvíamos os gemidos das árvores em cio, e dentro
de água sentíamos os alicerces dos corações de aço a derreterem,
como derretem as nuvens de açúcar na boca de uma criança, como
derretiam as nuvens de açúcar na tua boca fingindo Primaveras e
rosas de abelha, éramos os únicos habitantes do planeta X-321 e
Parvalhão, estúpido, ou
Paspalho?
E acreditávamos nas cartas perfumadas que
enviávamos ao final da tarde nos olhos de uma andorinha, e
Eu?
Três dias depois ela regressava, estava cá, na
caixa de chapa zincada com uma portinha mínima, e mal dava para
entrarem os dedos, finos, meus, como os varões de aço no estômago
de um pilar ou de uma viga, levantávamos-nos cedo, como se as
máscaras de Carnaval que na noite anterior tínhamos deixado em cima
da mesa-de-cabeceira fossem um espelho que saltara do guarda-fato, e
dávamos conta que eram apenas os nossos rostos disfarçados de
meninas do mar,
No nosso planeta X-321 não havia nada, água,
vento, pássaros ou barcos com asas, apenas dois corpos se misturavam
no salitre húmido das madrugadas acabadas de fazer, e ainda quentes,
comíamos-as, todas, sem percebermos que elas
Eu?
Que elas eram filhas de um Deus poderoso, teimoso,
arrogante, como as paixões entrelaçadas nos céus do planeta X-321,
como os pregos do leito da morte das flores embalsamadas, e tínhamos
dentro de nós pedaços de vidro, em placas, finas, que serviam para
quando viesse a noite, nós, eu, tu, eu e tu, rasparmos o velho
mármore dos muros que o sono deixava sobre os versos em arame
forjado, tristes, nós, à procura do sossego, e das acácias em
flor,
Hoje,
Uma fresta da noite copia-se e cola-se no branco
papel com pontos de suor, chamavas-me parvalhão, estúpido, ou
Dois cadáveres dissecados pela caneta de um poeta,
inventa-nos quando a solidão o abraça e a insónia lhe bate à
porta, quase que me atrevo a afirmar que
Eu e tu, nós,
Somos as lágrimas de fantasia dele, somos os restos
de tinta e papel mata-borrão, como duas candeias de poemas suspensos
nas janelas do planeta X-321, um espaço vazio, eu e tu, nós,
Que este poeta nos ama, como nos amávamos sentados
junto à margem do Tejo a cilindrar cigarros e a diluirmos cerveja e
vodka nas nossas bocas cansadas dos tormentos que vagueavam nos
pinheiros entre xistos e socalcos, os vidros, em placas, finas,
começavam a romperem-nos como o poeta rompia as pequenas folhas de
papel e destruía os poemas escritos, e percebíamos que também nós,
eu, tu, nós
Dois poemas escritos pelo louco poeta.
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha