quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

As coxas de diamante lapidado

Me perdi, desencontrei, me amei e chorei por você, me perdi, e me cansei, me desorientei, tudo, tudo por você, sonhei, escrevi versos sobre a luminosidade das pálidas tardes que eu inventava para
Para você,
Inventei um sol e uma lua, construí jangadas de beijos e pintei
Para você,
E pintei o céu nocturno das planícies complexas dos orvalhos destinos em círculos de luz com olhos verdes e cabelo castanho, havia uma rosa dentro e um livro que eu roubei
Que tu roubaste num público jardim,
Que eu roubei de um silêncio de Primavera, para você, me perdi, desencontrei, e me amei
E chorei, inventei as loucas abelhas das paredes de xisto, e me cansei de procurar as ditas palavras do amor, me amei, e me apaixonei, tudo
Por você,
Amanhã serei um fio de solidão suspenso entre dois postes de iluminação, amanhã serei uma bola de neve com uma cenoura e duas azeitonas, muitos vão acreditar
E dizerem
Este é o dito António das névoas, homem de poucas palavras, desamado, desacreditado, este é ele, aquele que vocês diziam ter poderes mágicos na língua e que das mãos saiam versos, afinal, afinal este não é ninguém, por você
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei
No pavimento térreo das amoreiras voadoras, tive sonhos e tive grandes loucuras sobre barcos com lentes de contacto, tive o céu ao meu dispor, e nada disso eu quis, não quero, detesto, as palavras do amor, os versos que escrevo, os versos que reescrevo, invento, a ventosidade, alimento-me das dálias masculinas e femininas dos jardins da Babilónia, e
Amei, e chorei, e sonhei, e tombei, da Babilónia para você
Um magnifico frigorífico a cores, uma máquina de café expresso, alguns livros e umas telas ranhosas que em horas vadias o dito António das névoas desenhou e pintou, tudo, tudo para você,
E hoje pergunto-me onde está ele? Nunca mais o vi, nunca mais ouvi os seus lamentos quando se sentava na varanda, quando puxava de um cigarro maroto, e desabafava palavras dele com as minhas palavras, quando misturava o fumo dele com o meu próprio fumo, e hoje
(Pergunto-me),
(    )
(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

O ressacado comboio dos sonhos amorfos

Dos ombros da prima Glória saltitavam os findos espaços que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas
Que o velho Horácio semeia,
Colhe,
O ressacado comboio dos sonhos amorfos, das palmas as palmas para o artista conceituado em turnê pelas janelas da rua do Alecrim, algures, neste país, algures num outro continente, há-de sempre existir uma rua como o nome de
Alecrim
Ou
Francisco qualquer coisa,
Tanto faz, dizias-me quando regressava a casa com a carteira esvaziada pelos vómitos e diarreias diárias, sentíamos o silêncio frio nas tardes de verão, e víamos, deambulando pela rua, homens, mulheres, crianças, todos, todas, elas e eles e eles e elas
Ou
A transpiração nocturna caminhando sobre um pavimento de alumínio entre duas bolhas castanhas, as flores dormiam, e tínhamos na algibeira meia dúzia de notas de vinte escudos enroladas como se fossem um tubo de queda, como os que se utilizam para escoar as águas pluviais quando torrencialmente chove, ou
Sentíamos os fluídos das madrugadas em flor entranharem-se nos orifícios vazios que um suicidário amador deixou cair sobre os canteiros de rosas vermelhas, “cuidado – pintadas de fresco”, um silêncio transformado em palavras anunciava a morte do perfume melancólico que as devidas mãos de fábula exportam para os infindáveis Rossios das cidades suspensas na mesa número sete da esplanada com sombra para os defuntos organismos que a pura vaidade incendeia, plantas, ou esperávamos pelo nascimento de um Francisco qualquer coisa
Ou, ontem, depois de encerrarmos definitivamente as mãos entrelaçadas nas sereias de amêndoa e darmos-nos conta que existiam rosas por pintar, mesmo lá no centro do canteiro 2B, no meio circunflexo, os sexos murchos das aldeias despidas pela solidão das noite em construção, a vaidade, quando vinha, não era para todos, e alguns deles, delas, deles e delas
Dormiam duplicadamente como os poemas incompreendidos que a avó Hortênsia escrevia antes de dormir, quando dormia, porque ela passava os dias e as noites e as horas e os minutos e os derradeiros segundos
Acordada,
E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel
“Cuidado – Pintadas de fresco”, e eu ouvia-as camuflarem-se no capim de ninguém, sabíamos, que os tubos de areia depois de mortos tinham dentro de si um líquido espesso, peganhoso como o mel, mas de cor diferente, pingavam pedacinhos de lágrimas de vidro, e continuávamos embrulhados nos suores frios das tardes de verão, e continuávamos embrulhados nas tórridas diarreias de insónia que as noites traziam de longe, estranhamente, sabíamos que os hotéis mórbidos das cidades com Rossios à deriva como um barco espetado num buraco negro algures no espaço longínquo, os quartos com casa de banho privativa arrumavam-se no quarto andar, e sobre nós, dormiam as clarabóias das estrelas sem futuro, e eu
Percebia,
E eu
Percebo,
Compreendo,
Não tenho dúvidas,
Ou
(E eu sabia que a velha era rija, como as pedras de Trás-os-Montes, e os pinheiros, e os pássaros e os homens, e as moças pintadas de vermelho, como as rosas de papel), que às vezes tinha sonhos que um velho de cabelo comprido e barba branca me roubava, e ficava sozinho, sem ninguém, à deriva sobre as alcatifas do oceano, aos poucos afundava-me, aos poucos deixava de ter força para remar contra as marés de inferno que o velho de cabelo comprido e barba branca não quis levar de mim,
Tínhamos
Ou
Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci
E tão pouco me recordo das janelas de vidros riscados, as lentes dos óculos dormiam à cabeceira da avó Hortênsia, e confesso que tinha pena da velha, mas que podia eu fazer, nada, quase nada, e só depois do mel com sabor a qualquer coisas estranha, nós pensávamos que um Francisco vinha
E nunca regressou, e todos os tubos de areia morreram, e todas as bolhas castanhas morreram, e todas as notas de vinte escudos
Esqueci-me
E todas as notas de vinte escudos ainda hoje brincam na gaveta da mesa-de-cabeceira da avó Hortênsia, coitada, tão velha, mouca, e transporta um esqueleto virtual como peças sobresselentes compradas por um dos netos da última viagem à China, e tirando isso
Já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel, já não sei como eram as nossas noites à lareira, já esqueci os aviões e os barcos de papel e os papagaios de muitas cores que um cordel prendia ao portão de entrada de um quintal hoje fantasma,
Ouviam-se e deixamos de ouvir,
Esqueci-me
Como era o amor.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O louco amor dos bonecos de trapos

(  )
O Rio,
Nos intervalos fazíamos amor e as tardes intermináveis pareciam pequenos ponteiros de segundos enrolados nas folhas das mangueiras, o relógio estonteando minhocas de neblina nos buracos friorentos, no inverno, que o gesso da parede do quarto transpirava sobre os nossos corpos molhados, chovia, sempre chovia em nós, e ambos amávamos loucamente aquele rio
Qual rio,
qualquer um, sem nome, idade, sonhos, sexo, crenças religiosas, nada, não queríamos saber de nada, apenas que o amávamos loucamente
O rio,
Indolente, faminto, todo o amor aprisionado dentro de um velha caixa de sapatos, tudo envelhecido desde o último encontro e visita à prateleira onde dormem os pequenos bonecos de trapos, o chapelhudo não lá, o chapelhudo ficou lá, longe, fora, e todas as cartas de amor ou as cartas poucas do amor prometido, também elas, lá, longe, do outro lado da rua,
Nua
Também tu?
Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos papel, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos caneta ou lápis ou esferográfica, Escrevias-me silenciosamente nos meus olhos quando não tínhamos luz e às vezes
Faltavam-nos as palavras de “meda”, pequenas, poucas, algumas perdiam-se nos nossos lábios que um largo com palmeiras desenhava nos paralelepípedos graníticos que a noite escondia como tu te escondias na prateleira onde dormiam
Os ditos bonecos de trapos, alguns construídos com pedaços da tua saia, outros com os restos mortais esqueléticos das minhas calças de ganga, e ainda tínhamos outros, os mais “escurinhos” fazíamos-los com os sobejos de sabão e restos de caligrafia, a minha, tão, tão
Também tu? Quando me pressionavas para deixar de fumar, e nua
A rua dos sentidos perdidos, as alfaias em busca de tractores agrícolas como dentes afiados a rasgarem os extensos torrões de açúcar granulado, de cana, beterraba, adulterado em Sacavém ou noutro local qualquer, bebíamos o afamado uísque das noites de boémia quando as caves abarrotadas semeavam o barrento hálito de insónia em exíguos espaços nocturnos, ela, ela
E eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas,
E partia sem percebermos se era de dia, sem percebermos se era de noite, sem percebermos
(Havia bananas em fartura que acabavam por apodrecer, caíam as mangas e uma pasta viscosa preenchia os segmentos de rectas em vazio que de quem e além apareciam no pavimento de cimento, cruzava os braços e imaginava pequeníssimos regos de sumo de manga como ribeiras a caminharem para os braços de um grande amor a que toda a gente chamava de rio),
Sem percebermos que o amor é assim; nasce, cresce, torna-se adulto e morre, como todas as coisas, e eu respondia-lhe que não tinha paciência para beijos enfermos e caricias sonolentas, e eu respondia-lhe que o inferno é aqui.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

domingo, 27 de janeiro de 2013

(    )
Inocência dos sonhos, a cidade plantada na copa de uma árvore, debaixo dela brincam crianças de cabelo castanho, meninos, meninas, homens, mulheres, silêncios de oiro, rios cansados de regressarem ao mar das oliveiras, entre a montanha dos pilares de areia e a táctil mão de desejo que ela, a minha única irmã, transportava para as cavernas do ciúme, havia a noite, triste, e tínhamos acabado de perder todas as estrelas do céu, penhoradas as nuvens, pergunto-me
Que faço eu aqui? Não sei, mas tenho a certeza que os meus irmãos são loucos, e que as acácias salgadas do meu primo Augusto são processos revolucionários em curso, doutorados pelos bares e caves da cidade, ouviam-se gemidos de luz quando atravessava de eléctrico cidade, a mesma cidade a que todos chamávamos
Cidade da inocência dos sonhos,
Alguns azuis, outros, outros encarnados, confesso, gosto do vermelho, mas prefiro o negro, a noite é negra, os buracos negros, evidentemente, são negros, gosto, adoro, amo, as palavras pretas e pretos que voam dentro dos meus poemas, amo as cidades negras vestidas de branco e inventadas pelas mãos de uma criança negra, preta, húmida
A cidade
Toda nua,
E
Às vezes,
E às vezes ouviam-se orgasmos de mel nas colmeias dos sótãos perdidos dos edifícios perdidamente apaixonados pelos carros em miniatura que o menino António trazia nos bolsos do bibe, chegava à escola, e de bata branca, senta-se numa carteira carunchosa, velha, a mesma onde se tinha sentado o pai, o avô, e o tio Francisco, que diziam ser louco e que depois de ter vivido dez anos na Coreia do Norte, nunca
A cidade
Toda nua,
Às vezes, e dizem que nunca mais apareceu, evaporou-se, como as lâminas de barbear que o aldrabão do meu vizinho me vende, riscadas, velhas, com as janelas extintas em fios de aço, ouviam-se todas nuas
As árvores onde vivia a cidade da inocência dos sonhos, quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
Como os pássaros que viviam no meu pobre sótão, coitado, com um cadastro infernal de doenças, diabetes, colesterol, próstata e nunca esquecer o reumático, e ainda eu não tinha chegado ao primeiro andar já ele em queixumes e aos gritos que às vezes eu não sabia se ele estava mesmo doente, se ele se fingia de doente ou pior, se ele estava grávido e a dar à luz
Eu suava, subia dois a dois, os degraus envelhecidos da madeira ranhosa que o velho Fernando deixou quando partiu para a aventura dos montes de areia, sabia-o e sabia-a, ouvíamos docemente o choro de um recém-nascido, e eu, acreditava
Sim, vou ser pai
E ouviam-se do quinto andar – esquerdo, ao terminar o dia, esperava-a à porta da galeria falida onde ela teimava trabalhar, sabendo que as paredes
Nuas, todas nuas
São gémeos,
E juro que ainda hoje não acredito que de um sótão envelhecido, doente, perdido numa cidade que vive sobre a copa das árvores
Tenham saído os meus queridos irmãos,
Loucos,
Pareciam-se como os outros sótãos da cidade, o mesmo rosto, o mesmo tamanho, a mesma cor, e loucos
E que nunca mais apareceu o tio Francisco.

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha


Em “Mudanças” de Mo Yan, várias vezes é referido um camião (Gaz 51) de fabrico Soviético, EX-URSS. Por curiosidade, até para perceber se era ficção do autor, dei-me ao trabalho de pesquisar, e realmente existiu e ainda devem existir camiões Gaz 51; fica aqui a respectiva fotografia. Produção (1946-1976)