segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Marinheiro de Luz


Achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

achas-te superior
rainha das coisas boas
montanha de luz
achas-te uma flor
uma simples flor
com pernas de cansaço
e braços
aos abraços
oiço o balançar da porta de entrada
truz truz truz
ninguém será certamente para me dar nada
nem uma simples corda de aço,

um prato com sopa de legumes encarnados
vinho do porto velho como os pássaros com asas de mar
(achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente)
e às vezes
multiplicam-se as manhãs de inverno
cresce o inferno
maré de marinheiro
quando eu sentado no barbeiro
penso solitariamente nas nuvens de barbear,

sinto-te em espuma no meu rosto envelhecido
e das saudades
as pequenas saudades
correr amar correr livremente
e voar
e amar
voar até cair nos teus braços
abraços
uma corda de aço
do tão construído cansaço
a espuma de ti mergulhada no meu simples desenho da alvorada
e tão triste e tão só tudo aquilo que foi esquecido,

achas-te superior
indigente
com falta de amor
como muita gente,

mas continuarás a ser uma resma de palavras
sem nexo
moribundas quando a mergulhada canção de amor
não é uma flor
é uma canção
que sofre
que dói
e mói
as pedras finas da calçada dos amores proibidos
e dói
mói
a doçura tristeza do desejo.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha

As cinco primeiras insónias da madrugada

Suicidou-se nos meus braços,

Quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais ela podia desejar?

Saía de casa por volta das 04:30 horas, ainda não tinha acordado o dia, levitava-se pela casa em bicos de pés, beijava na face cada um dos filhos, rogava uma praga ao marido embriagado e pensava nas primeiras cinco insónias do amante, pegava-lhe na fotografia ao de leve, e beijava-o docemente

Nos meus braços,

O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Nos meus braços,

Fazia a contabilidade da casa, organizava os jantares de família, digamos que ele era a governanta lá do sítio, cabisbaixo, de asas poisadas sobre a lareira dos sonhos, fazia contas, e quando chegava à prova dos nove

Foda-se a conta está errada,

Nos meus braços, os fósforos que a morte come quando de deita o dia, chega a casa cansado, desinteressadamente infeliz, faltava-lhe tudo, os rebuçados, as guloseimas, as amêndoas de chocolate e o caramelo Espanhóis que o contrabandista do zarolho oferecia todos os anos pelo Natal, felizmente já faleceu, e vimos-nos livres dos caramelos

O meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, O cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu pai acordava todas as manhãs embrulhado em vómitos e crateras de sulfato de amónio nos lábios, acendia o cigarro da desgraça, o cão impaciente, o pássaro fodido, e a minha triste mãe de lágrimas nos olhos a escrever as queixas nas faces rosadas do amante, faltava-lhe qualquer coisa

Nos meus braços, suicidou-se ao entardecer,

E o meu pai sempre disse, isto um dia vai acabar mal, nos meus braços, o cão sabia ler, o cão sabia escrever, e o pássaro não resistiu aos salpicos das garras do gato do vizinho que aproveitando a janela da cozinha entreaberta, zás..., fodeu-lhe o pescoço

Enfaixado nos caramelos de Luz, chovia, o meu

Foda-se a conta está errada,

Docemente a beijava, sem perceber que a casa ardia na fogueira da paixão, os meus queridos irmãos

Suicidou-se nos nossos braços,

Eu

Caminhava com quatro filhos, um marido alcoólico, o amante constantemente com as primeiras cinco insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais posso desejar?

A morte,

O gato constrói um arroto que todo o prédio presenciou sonoramente, na Antena 3 desenhava-se o Planeta 3 nas falsas palavras dos livros dele, os uivos, os gemidos, os milagres concedidos à minha querida mãe, e que hoje partilha uma assoalhada bem lá no alto

A morte de um orgasmo,

Bem lá no alto, No céu?

Os meus três irmãos os estúpidos de sempre, engasgados nas asneiras da literatura vendida no vão de escada, subia-se, subia-se

No sexto andar seus parvalhões,

Subia-se até que chegávamos ao céu,

Eu, três irmãos, a minha querida mãe melancólica, o meu paizinho sempre embriagado, o amante da minha mãe constantemente à procura das cinco primeiras insónias da madrugada, um cão, um pássaro, que mais eu podia desejar?

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Suicidou-se nos meus braços sem perceber que eu era um cadáver ensonado que de jardim em jardim, que de embarcação em embarcação, que de autocarro em autocarro (riscar autocarro porque estão em greve), que de papoila em papoila

Bem lá no alto, No céu?

A morte de um orgasmo depois do suicídio das lâmpadas de néon que todos eles utilizam no Natal,

A morte de um orgasmo

Na cabeça da lua, nos braços

Bem lá no alto, No céu?

Sim, no céu, os dias deixaram de ser dias, os dias, pequeníssimas folhas de papel voando sobre um ninho de cucos...

(texto de ficção não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

Festas Felizes

O espelho curvilíneo da melancolia

Todas as noites me afundo num oceano de saudade, mergulho, indefeso, procuro a sombra marítima que brinca dentro do meu peito, sem jeito para alguma coisa, todas as noites me afundo, de saudade, na saudade, viver sem saber o que é o medo, viver, sem saber... o que é

algum dia, qualquer dia, ouvirás as vozes que deixaram dentro da gaveta dos sonhos, as tuas mãos,

o que têm as minhas mãos pai?

as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes, outras, nem por isso, e procuras-me dentro dos pinheiros mansos da floresta das mães abandonadas, as flores, as árvores, e todos os filhos das manhãs de inverno, aqui, agora, procuras-me e eu escondo-me

o que têm pai?

olhas-me no espelho curvilíneo da melancolia absorvida pela pele esbranquiçada de um esqueleto sem sono, penso

desfaço, não desfaço, e acabo por concluir que a barba é um acessório desnecessário, o cabelo tomba no jardim com os canteiros alinhados, o tapete, a carpete, alguns dos tacos devido à humidade levantaram-se, de pé, em tesão, e às vezes, e às vezes

o que têm pai?

tropeço, linearmente vou de encontro frontalmente contra as flores de cetim junto aos cortinados de linho, hesito

o que têm pai? Penso, e às vezes

pareço um pedaço da pano com remendos e buracos, como o telhado do palheiro, telhas em perfeitas condições, e telhas

o que têm as telhas pai?

e telhas com os membros inferiores fracturados, moribundas, que deixam passar as lágrimas do céu, as tuas mãos mergulham, todas as noites, de saudade em saudade, de peito em peito, foge-te o fôlego, as coisas belas morrem, afogam-se no oceano de saudade, às vezes

todas as noites me afundo num oceano,

todas pai?

todas, todas as noites.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó

domingo, 23 de dezembro de 2012

Maria Feliz

Nasci numa aldeia cinzenta, e todas as pessoas traziam na cabeça uma flor de lótus, uma pequena ribeira caminhava sem destino entre os canaviais e os choupos velhos e caducos que viviam em comunhão de bens, felizes no casamento, tinham três filhos, duas raparigas, e eu

eu continuo sem saber o que sou,

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, sisudo, chato, um travesti de trinta e dois anos, bancário, regressava a casa depois de um longo dia de trabalho, apanhava o eléctrico, contava as pombas até chegar à porta de entrada do prédio, entrava, começava a subir as escadas tranquilamente, no patamar do primeiro andar ainda era o Carlos, subia, subia, e quando chegava ao quinto andar,

agora sei o meu nome,

Maria Feliz, entrava em casa, descalçava os sapatos altíssimos e colocava as pernas sobre a mesa de mármore que jazia no centro da sala de estar, pegava no comando da aparelhagem sonora, carregava no PLAY e sempre o mesmo CD no seu interior

agora sei o meu nome,

Wordsong (AL Berto)

e ele,

ela,

tinham saudades dos tempos da infância quando apenas tinham como memória uma aldeia cinzenta, apodrecida, a madeira das traves e dos barrotes, de vez em quando, pingava um líquido sujo e espesso, e quando lhe passava o dedo e levava-o à boca

ela percebia que eram lágrimas com mel,

chovia dentro de casa, tínhamos um cão a que dávamos o nome de REX, e quase sempre o gajo desobedecia-nos, traquina, as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado nas amoreiras e silvais que depois de cair a noite desapareciam como desaparecia o fumo dos cigarros do meu irmão, e nós deliciávamos-nos com os poemas

eu continuo sem saber o que sou,

ele

sisudo,

ela

levantava-se do sofá, acabava de despir-se, e quando se olhava no espelho e percebia que não tinha sobre si outra qualquer roupa, nem vestígios dele, corria até à casa de banho, abria a torneira da água quente, deixava-a borbulhar como uma panela ao lume com estrelas e pedaços de néon, e aos poucos e silenciosos sonhos do mar, começava numa carícia intensiva, até se cansar, até perceber que ela era ela, até

ele

sisudo,

ela

ela percebia que eram lágrimas com mel que o seu corpo derramava como se fossem a seiva envenenada das árvores de papel, sisudo, e pendurava no armário o Carlos, e a lua apoderava-se dela, e a lua escrevia no corpo dela,

viste o Carlos?

ele

sisudo,

ele

chato,

ele, que todos os dias se levantava de madrugada, Maria Feliz ia ao guarda-fato, tirava o Carlos, vestia-se, raramente tomava o pequeno-almoço, deixa-a sobre a cama até que o cair da noite se agarrava às janelas do quinto andar,

sisudo,

agora sei o meu nome, agora percebo a cor da aldeia onde nasci, vivi, cresci..., e quase

morri,

ela

viste o Carlos?

chato, sisudo, as árvores que nem os malditos pássaros encarnados queriam sentar-se sobre elas, é triste, era triste a solidão dos dias, e percebia que as minhas irmãs

não gostam de mim, sempre me odiaram, viste o Carlos? Apenas palavras para os poucos transeuntes ouvirem, porque nas minhas costas

o Carlos é um chato, e sisudo, e

as ruas deixavam de pertencerem-me, e

ela

viste o Carlos?

e elas sempre souberam que nunca existiu nenhum Carlos, e elas

as raparigas desde muito cedo começaram a fazer desenhos nas paredes da casa, um rés-do-chão enfaixado

numa rua de Cais do Sodré, e quase

morri.

(não revisto)
@Francisco Luís Fontinha
Alijó